Por mim convidada a escrever para o blog Brasília, por Chico Sant’Anna, algumas linhas sobre a polêmica do Projeto de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília, o PPCUB enviado pelo governo Agnelo à Câmara Distrital, a arquiteta e filha de Lucio Costa, o urbanista que projetou Brasília, me enviou as seguintes reflexôes abaixo:


Chico Sant’Anna.

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Vista aérea do Plano Piloto. Foto de Bento Viana

Para entender o Tombamento de Brasília e a Portaria 314 do Iphan

Quando o governador José Aparecido propôs o tombamento de Brasília – apenas 25 anos depois de inaugurada – criou-se uma situação inedita: como tombar o que ainda estava em obras? O Iphan, até então, tombava construções, mesmo em se tratando de proteger conjuntos urbanos, como Ouro Preto ou o Pelourinho.

Quem descobriu a solucão foi o arquiteto Ítalo Campofiorito Ele “captou” a essência da proposta de Lucio Costa – Brasília “nasceu já’ pronta, como Minerva”, e foi implantada exatamente assim, como foi concebida – como roupa de adulto dentro da qual se colocou a capital recém-nascida.

E foi essa sintonia absoluta entre concepção e implantação que tornou possível a transferência definitiva da capital.

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Italo então propôs que se tombasse, exatamente, a concepcão de Lucio Costa, que definiu a configuração do espaço urbano através da estrutura viaria, da volumetria construída e do paisagismo, estabelecendo critérios basicos de uso e ocupação do solo pertinentes a cada uma das chamadas Escalas Urbanas.

É disso que trata a portaria 314 – que não tomba nenhuma construção: o que é preservado é o projeto urbano. Vale dizer, que a portaria 314 fornece os critérios necessários e suficientes para que se avalie se intervenções propostas (inclusive se aprovadas pelas NGBs da administração local), são ou não compatíveis com o conceito original da cidade, que o tombamento impõe que se preserve. Ou seja: se Brasília fosse uma composiçãomudical, o objeto do tombamento seria a “partitura”. Os “arranjos” são possíveis, na medida em que não comprometam a partitura original.

Brasília e suas Escalas Urbanas

Cada uma das Escalas Urbanas, como definidas por Lucio Costa, tem um caráter próprio, que prevalece.

Ou seja:

Na Escala Monumental o ritmo da ocupação é altivo e sua intenção é conferir à cidade a dignidade inerente a uma capital, através da criação de uma paisagem construída bela, poderosa e identificada desde o primeiríssimo momento: o impacto da presença da Esplanada, com a Praça dos Três Poderes, permanece o mesmo, desde 21/04/1960!

Ali, a abordagem paisagística do Plano Piloto rege a presença do verde, de acordo com o que propõe a Escala Monumental  – ou seja: canteiro central simplesmente gramado do Congresso até à Torre de TV (Roberto Burle Marx entendeu isso e abriu mão do seu projeto, mas o GDF todo-poderoso, com apoio do Iphan pretende alterar isso. Não Pode!!), Praça dos Três Poderes tratada como praça seca, apenas com o fórum de palmeiras imperiais (pelo amor de Deus, que não inventem de plantar arvores floridas lá!!!)

Na Escala Residencial, o partido paisagístico atua de forma clara na configuração física e de uso que a constitui: a cercadura arborizada que determina o espaço próprio de cada Superquadra, com sua entrada única para veículos, e seu interior mais próximo de um quintal comum do que de um jardim, ao mesmo tempo configuram um “remanso urbano”  para o cotidiano, e, definindo no espaço os grandes quadrados, permitem o indispensável diálogo visual entre Escala Residencial e a Monumental.

Na Escala Residencial, a Bucólica faz suas inserções mais à vontade e dá esse ar descontraído, que todo morador de Superquadra conhece muito bem, e que eu chamei há pouco de “quintal”, mais do que jardim.

Aproveito para lembrar que o que foi chamado de Superquadra no Noroeste, NÃO É SUPERQUADRA. Superquadra de verdade não é lugar de passagem, por isso tem entrada única para veículos, o que cria um inesperado e simpático parentesco com a vila.

Na Escala Gregária – a última a ter tido condições de se configurar – ancorada no extraordinário ímã agregador que é a Rodoviária, mais a concepção dos dois Setores de Diversões, com suas pracinhas anexas, como complemento da própria Plataforma Rodoviária – aconteceu, a meu ver, um equívoco no desenvolvimento dos setores centrais, exemplarmente óbvio no infeliz Setor Comercial Norte .

A Escala Gregária não quer saber de inserções bucólicas, tão benvindas na Escala Residencial. O que ela pede são calçadas largas, confortáveis para se andar, pequenas praças, ramblas, percursos claros …, finalmente, estamos no … centro da cidade!

E a Escala Bucólica, finalmente, determina o modo de ocupação admissível no conjunto da área entre o “avião” e o lago, ou seja, o “o que” e “o como”. É ela que rege a relação entre áreas edificandi e não edificandi … Na realidade, acho que todo brasiliense sabe do que eu estou falando! Ela quer franco predomínio das áreas livres, não edificadas, e quando edificadas, impõe que a ocupação seja rarefeita, os gabaritos baixos, etc etc etc. (ou seja, tudo o que a especulação imobiliária odeia)

Voltando às “inserções”:

  • A Escala Monumental tem a sua, não quer saber de inserções, nem residenciais nem gregárias.
  • A Escala Residencial admite, e gosta, de inserções de caráter bucólico, rejeita qualquer inserção monumental, e admite, com prazer, as inserções gregárias que são os comércios locais… desde que obedeçam, devidamente, ao projeto original.
  • A Escala Gregária e a Escala Bucólica não gostam de inserções, são opostas e complementares na partituras musical do Plano Piloto!

Para concluir, Lucio disse:

“A coisa mais importante de Brasília é o simples fato dela existir.”

Preservar a concepção original do Plano Piloto não é favor nenhum, é um mínimo de respeito ao testemunho vivo da incrível realização da nação brasileira que Brasília significa.

PS – Uma sugestão: antes de “interpetarem” o Plano Piloto, procurem compreendê-lo – por extenso.

Maria Elisa Costa
Arquiteta e filha de Lucio Costa