Torre Digital, novo cartão postal de Brasília. Foto de Chico Sant'Anna
Torre Digital, novo cartão postal de Brasília. Foto de Chico Sant’Anna

Por Chico Sant’Anna

Aos 54 anos, Brasília já começa a viver um processo acelerado de perda de sua memória urbana. A cada dia que passa, novos elementos da paisagem vão desaparecendo. É certo que a cidade não pode ficar congelada, mas como diz o urbanista José Roberto Bassul, também não pode derreter. Pessoalmente, prefiro outra figura de linguagem: se a cidade não pode ficar engessada, tem que se modernizar, este processo não pode deixar fraturas expostas. Recentemente, o aeroporto internacional de Brasília teve uma nova ala inaugurada. Bonita, vistosa, toda de metal e vidro.

O estacionamento foi ampliado, mas ai já começa a primeira fratura. A  Praça Santos Dumont, que ficava à frente do Aeroporto Internacional JK é a mais recente vítima do avanço desmedido e impensado das obras (não) projetadas para adaptar a Capital Federal à Copa do Mundo. Onde antes existiam espelho d’água, palmeiras, árvores do cerrado e até um busto do Pai da Aviação, agora prevalece um grande e árido cimentado, construído pelo consórcio Infraero/InfrAmérica.

Aeroporto - Praça Santos Dumont
Onde antes existiam espelho d’água, palmeiras, árvores do cerrado e até um busto do Pai da Aviação, agora prevalece um grande e árido cimentado construído pelo consórcio Infraero/InfrAmérica. Da Praça Santos Dumont restou apenas uma imagem embaçada do google maps.

O estacionamento ganhou duas mil novas vagas, quase todas sem uma sombrinha sequer. As obras de ampliação do estacionamento podiam muito bem ter garantido a presença do busto em bronze. Nem que fosse uma pequena ilha para garantir a manutenção do monumento. Perder duas ou três vagas no estacionamento não faria nenhuma diferença no faturamento dos empresários que o exploram. Mas não, o processo de apagar a memória é mais forte do que os de sua preservação.

Assim, o busto de Santos Dumont, que estava lá desde os tempos do barracão de madeira que foi o primeiro aeroporto da Nova Capital, desapareceu, ninguém sabe onde foi parar a escultura. A única lembrança, são as imagens do google maps.

Também a Praça 21 de abril – alguém ai sabe onde fica? É na 707 Sul -, abrigava um busto em bronze de Santos Dumont, o Pai da Aviação. A obra de arte voou há muitos anos e dela ninguém tem notícia. Parace que Brasília não tem muito apreço pelo inventor do aeroplano. Balão sem árvores e desmatado

Balão do Aeroporto 7-4-2013 (5)Espaço Cósmico 81

O Bambolê de Dona Sarah, detonado pelas obras da Copa, é mais um ícone na cidade que foi desconstruído. Mesmo que venha ser reajardinado como antes, não mais poderá contar com as cinquentenárias árvores que o adornavam, pois poucos metros abaixo da terra há uma enorme laje de concreto do mergulhão feito pelo GDF para atender as exigências da Fifa. Não haverá profundidade para que as raízes se instalem.

No extinto Balão do Aeroporto, havia uma escultura, denominada Monumental Espaço Cósmico 81, de Yutaka Toyota.

Exposta desde 1980, a obra que lembra um triangulo feito por trilhos nos quais são apostos dois cubos. Foi retirada para reformas no local em meados de 2005. Nunca mais foi vista.

Agora, com o fim das obras do mergulhão da Fifa, uma pergunta que não quer calar: A escultura retornará ao seu local?

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Brasília é uma cidade jovem, mas já tem sua história, uma história intensa para seus poucos anos de vida. O problema é que Brasília, como todo jovem, não dá valor e não preserva sua própria história. A cada dia, a cada obra, a cada mudança urbanística, lembranças de um passado, não tão distante, vão se evaporando.

Quem passeia no Núcleo Bandeirante, a antiga Cidade Livre, dificilmente irá encontrar lá um único exemplar dos barracos de dois andares que se espremiam pela cidade, colados um a um. Sobrados de madeira imortalizados no filme Bye Bye Brasil.

Na Vila Planalto, as antigas casas de madeira dão lugar a casarões de alvenaria, comércio e até hotel. O bucólico encanto particular da Vila vai se perdendo pela ação da especulação imobiliária. A cidade perde sua personalidade e se iguala a qualquer outro emanhanrado de casas e sobrados existentes no país.

Também na área tombada do Plano Piloto, a saga especulativa transforma em casarões que mal cabem em seus lotes as antigas casas construídas na W.3 Sul pela Fundação da Casa Popular – o BNH de Juscelino. Casas que construíram um modelo de convivência harmônica entre os vizinhos. Sem cercas, sem privatização de áreas verdes.

Esta borracha que vai apagando a história da Nova Capital, principalmente de seus primórdios, fica mais afoita toda vez que o GDF dá início a obras viárias. E isso não é privilégio da atual administração, parece mais uma tradição.

No Eixo Monumental, entre os Setores Hoteleiros Sul e Norte existia um grande parque de vivencial, que deu lugar a interligação da avenida W.3 Sul e Norte.
No Eixo Monumental, entre os Setores Hoteleiros Sul e Norte existia um grande parque de vivencial, que deu lugar a interligação da avenida W.3 Sul e Norte.

Foi assim quando interligaram as avenidas W.3 Sul e Norte. O parque de recreação, com rinque de patinação, pistas de aeromodelismo e tanques de navalmodelismo deram lugar ao viaduto atual. Não houve nem a preocupação de deslocar para as laterais da nova via os equipamentos públicos existentes anteriormente.

Os carros ganharam um acessomais ágil. Os moradores perderam um local de lazer e recreação.
Também quando da duplicação da Avenida das Nações, que os tecnocratas insistem em chamar apenas de L.4, apagando da memória das futuras gerações a denominação definida por Lúcio Costa para a principal via do Setor de Embaixadas, desapareceu um pequeno monumento.

Visita de Dwight Eisenhower ao Brasil, em janeiro de 1960, ganhou marco na Avenida das Nações. Monumento desapareceu.

Era pequeno, mas importante: um bloco de mármore branco trifacetado. Ele registrava a visita a Brasília, em fevereiro de 1960 – quatro meses antes da inauguração da nova capital -, do então presidente dos Estados Unidos, Dwigh Eisenhower, e o compromisso do mandatário norte-americano de nela construir a representação diplomática de seu país.

O marco desapareceu. Informações não oficiais indicam que no governo de José Roberto Arruda, seu vice, Paulo Octávio, a pedido da Embaixada dos Estados Unidos, teria retirado o monumento de onde foi inaugurado por Juscelino e Eisenhower e o cedeu à representação diplomática.

Se for verdade, trata-se de um ato de privatização e desnacionalização de um monumento que deveria ser de toda a sociedade e não apenas dos poucos e raros brasileiros que entram na embaixada.

Bustos de figuras históricas da praça dos Próceres estão abandonados e vandalizados. Salvador Allende, ex-presidente do Chile, teve a armação dos óculos, e, bronze, vandalizada.
Bustos de figuras históricas da praça dos Próceres estão abandonados e vandalizados. Salvador Allende, ex-presidente do Chile, teve a armação dos óculos, em bronze, vandalizada.

Cidade Monumental

Brasília, cidade monumental, não cuida bem de seus monumentos.

Um mau exemplo é a Praça dos Próceres, bem em frente ao gabinete do governador do Distrito Federal, ao lado da Praça do Buriti.

Criada na atmosfera da Nova República por José Aparecido de Oliveira, tinha por objetivo homenagear lideranças que trouxeram a liberdade de seus povos no mundo inteiro, em especial os heróis latino-americanos.

Originalmente, eram dez estátuas e bustos construídos com material robusto, como bronze e concreto, mas se deterioraram e viraram alvo de todo tipo de vandalismo, abandono e falta de conservação. Três imagens já não existem mais.

Segundo levantamento do jornal Metro, apenas o busto de José de San Martin, libertador de Argentina e do Peru, e Simón Bolivar contam com placas e bustos intactos. Simon Bolívar, o pai da Grã-Colômbia, foi um presente a Brasília do falecido presidente da Venezuela, Hugo Chávez. Da peça em homenagem a Miguel Hidalgo, que libertou o México, só sobrou a placa. Coisa que o busto do ex-presidente chileno, Salvador Allende, perdeu junto com parte da armação dos óculos. O local está se transformando num ponto de uso de drogas, nas barbas do Poder.

Até JK e Dona Sarah não escaparam da ação de vândalos.

Pouco mais acima, em frente ao memorial JK, até Juscelino Kubitschek e Dona Sarah foram alvo de agressões na cidade que criaram, conforme documentou o Correio Braziliense, em maio de 2012.

Os símbolos religiosos também são alvo da depredação. É o caso do conjunto de orixás instalados na Prainha do Lago Paranoá, réplicas de outro conjunto existente em Salvador.

As imagens foram recentemente recuperadas após terem sido incendiadas envoltas em pneus, numa técnica que relembra o método “microondas”, muito utilizada por traficantes, no Rio de Janeiro.

O vandalismo não é privilégio do Plano Piloto. Mesmo após a restauração, a imagem fixada na entrada dacidade de Santa Maria, é alvo constante de depredação e, bem pertinho do Distrito Federal, Santo Antônio do Descoberto teve a imagem do padroeiro furtada.

Conferência Distrital das Cidades 28-09-2013 (10)Solarius

Talvez o maior exemplo de descaso e abandono das obras de artes e monumentos no Distrito Federal seja o Solarius, popularmente conhecido como Chifrudo. 

Com seus dezesseis metros de altura, ele marca, às margens da BR-40, a entrada do Distrito Federal. Trata-se de uma obra do escultor francês Ange Falchi em homenagem aos candangos que vieram construir a Capital Federal.

O Solarius, doado em 1967 pelo governo francês a Brasília, foi idealizado a partir das informações vinculadas pela imprensa francesa sobre o movimento de migração dos brasileiros de todas as regiões a fim de construírem a Capital Federal.

Feita em aço, ferro, chapas galvanizadas, lã de vidro e plástico, a escultura foi considerada por seu autor como sendo o “símbolo do Pioneiro Indômito, que conquistou a região agreste e pungente do Planalto Central”.

Deveria ser uma demonstração de orgulho pela epopéia brasileira. Como muitas outras obras de arte, contudo, o Solarius está abandonado e não há nenhum esforço das autoridades educacionais e culturais em fazer com que o brasiliense tenha noção do significado que aquela obra de arte simboliza para a Capital Federal: além de uma homenagem aos pioneiros, é o reconhecimento internacional da importância de Brasíia.

O GDF nem sabe quantas são e onde estão as imagens e estátuas existentes no Distrito Federal. Não há um cadastro de monumentos. O jornal Correio Braziliense, em 2012, contabilizou 31 imagens apenas no Plano Piloto. “A maioria encontra-se em péssimo estado. Algumas esculturas estão com rachaduras e partes quebradas. Também tiveram pedaços arrancados ou acabaram destruídas” afirmou o jornal à época.

Como diz o dito popular, povo sem história, é povo sem memória, é povo sem futuroe o segredo do futuro de Brasília, talvez esteja em suas raízes em sua razão de ter sido construída e de ser.

Olhar e preservar o passado pode ser a melhor maneira de se assegurar a qualidade de vida no futuro.