1.-Vista aérea PlanoPiloto Foto-Bento Viana
Vista aérea do Plano Piloto. Foto de Bento Viana

 

Por Chico Sant’Anna*

 

Quando você nasceu, Brasília, eu já dava os primeiros passos, aqui mesmo, no Planalto Central. Crescemos juntos, como se você fosse minha irmã caçula.

Foto: Arquivo Público do DF

Quando o Lago Paranoá começou a encher, para te dar um clima mais ameno, eu estava aqui. Assisti a Gilda e a Pioneira, as primeiras lanchas da Capital, navegarem em suas águas. Fizemos muitas pescarias juntos, mas só dava Cará. Depois é que apareceram os tucunarés.

Brasília, 1963, quadra 42, hoje 713. Foto de Cláudio Sant'Anna
Brasília, 1963, quadra 42, hoje 713. Foto de Cláudio Sant’Anna

Para te compor, foram surgindo as quadras muitas com recursos dos institutos previdenciários. Tinha a do IAPB, IAPC, IAPETEC, IPASE, do Banco do Brasil, da Marinha, da Aeronáutica, da Câmara Federal, da Fundação da Casa Popular.

Janio quis acabar com a Cidade Livre. Transferiu os comerciantes e moradores para a Asa Norte.
Você foi mais forte: Jânio caiu, graças às forças ocultas, permaneceu o Núcleo Bandeirante e a Asa Norte deu os primeiros passos para se consolidar.

Mais tarde, da Invasão do IAPI, dos Morros do Querosene e do Urubu, das Vilas Tenório, Esperança, Bernardo Sayão e Colombo,  Curral das Éguas e Placa das Mercedes, vi  você construir a Ceilândia, parte dela, na antiga Fazenda Guariroba. Dai o nome de Guariroba a um dos setores da cidade.

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Você foi ganhando contornos de adolescente e depois de menina moça. Suas ruas, quadras e avenidas consolidadas, suas áreas verdes lhe deram forma.
Me botou pra correr várias vezes, com os “graminhas” que não deixavam jogar bola nas entrequadras.
Quando suas avenidas W.4 e W.5 Sul ganharam asfalto eu lá brincava entre os tratores. As máquinas eram nossos play grounds. Caminhão era o balanço, trator, a gangorra.

Brasília, te vi ganhar corpo: sua L.2 foi duplicada, a W.3 Norte foi interligada a Sul e, mais tarde, nasceu e o Parque da Cidade. As tesourinhas ganharam alças dos dois lados dos viadutos e todas elas passaram a insteligar o seu lado [W] Oeste ao seu lado Leste.

Brasília, 1964. Congresso Nacional cercado por tropas do Exército. Foto Arquivo Público do DF.

Você nem tinha completado quatro anos de existência e os tanques do Exército tomaram suas ruas. Trafegaram pela W.4, pensei que era parada cívica, até vê-los estacionados nos gramados do Congresso Nacional, onde hoje você abriga festas e shows.

Brasília, 1968: UnB é invadida por tropas militares. Foto Cedoc UnB

Em 68, ao completar seu oitavo aniversário, os militares entram na sua universidade. E sem vestibular. Você foi palco para que secundaristas marchassem pela W. 3, do Elefante Branco até a 710, onde funcionava o Usis e a Thomas Jefferson.
A UnB invadida, revelava lideranças como Honestino e você ja se destacava nacionalmente na luta pela democracia.

Brasilienses tomaram as ruas para receber a seleção canarinho de 1970. Foto UOL

Nosso teatro era o da Escola Parque, depois, Galpão e Galpãozinho. Tinha ainda o Cine Cultura. Era o triangulo cultural da cidade. Tudo ali, na 508 e 507 Sul.
Festival de Brasília: assistíamos no Cine Atlântida e, é claro, no Cine Brasília. Pelas suas ruas, curtimos as 24 horas de Brasília, com a curva do paredão da rodoviária.

A Loteria Esportiva ainda nem existia e já torcíamos pelo Rabelo, pelo DFL (Defelê), pelo Ceub, nos gramados do Pelezão e, depois, no primeiro Mané Garrincha. Em 70, lotamos as ruas e a Praça dos Três Poderes para comemorar o TRI.

Brasília, vi que você, ao longo desses anos, perdeu parte de suas raízes. Seu comércio, tocado pelos pioneiros desapareceu: Solomaq, Moplan, Itabrás, Brasilar, Serve Bem, Bi Ba Bo, Fofi…, O Cine Bruni, com aquela super pista de autorama, desapareceu. A lanchonete da Kibon, na Rua do Hospital Distrital, a Flamingo, a Confeitaria Santa Clara, a Maloca Querida, até mesmo o Chaplin e, seu vizinho, Cine Karim, não resitiram.
Aos poucos, você foi perdendo aquele toque de menina do interior e ganhando ares de cosmopolitana.

Brasília,1963, caminhões da construtora Kosmos Engenharia, responsável pela construção da SQS 106. Foto de Cláudio Sant'Anna
Brasília,1963, caminhões da construtora Kosmos Engenharia, responsável pela construção da SQS 106. Foto de Cláudio Sant’Anna

Também seus construtores, desbravadores, não conseguiram sobreviver às crises econômicas que o Brasil tanto viveu.
Kosmos Engenharia, Rabelo, Eldorado, Pederneiras e tantas outras.
Aos poucos, cada uma delas fechou seu canteiro de obras e deixou de colocar mais um tijolo na sua história.

Em 1977, Campus da UnB é ocupado por tropas policias. Estudantes mantiveram a greve. Foto: Arquivo agência UnB

Mas minha irmã, você nunca perdeu a sua combatividade. Mesmo sob o regime dos generais, você comandou o coral uníssono do “Como Pode o Juscelino Viver Fora de Brasília”, quando aqui os militares não queriam que seu pai fosse enterrado.
Em 1977, seus universitários voltaram a reivindicar liberdades democráticas. A irreverência crítica nos levou a fundar o Pacotão e com a sua obstinação cívica, fomos juntos às ruas brigar pela sua autonomia política, pelas Diretas Já, pela Constituinte. Pintamos nossas caras para derrubar um presidente que nos enganou. Mobilizamos-nos para afastar um governador que nos ultrajou.

Expansão urbana de Brasília avança sobre o verde do cerrado,como no caso do Setor Noroeste. Foto: Jonas Pereira
Expansão urbana de Brasília avança sobre o verde do cerrado,como no caso do Setor Noroeste. Foto: Jonas Pereira

Você, menina moça, passou a ser cada vez mais cobiçada.
Mas nada de relacionamento sério. Esta turma, que chegou depois, só queria “ficar” e depois cair fora com o bolso cheio.
No lugar dos engenheiros desbravadores, comprometidos com o seu futuro, brotaram as ervas daninhas da especulação imobiliária.

Brasília, minha irmã caçula, o tempo passou e foram muitas as transformações, mas nós dois continuamos aqui juntos.
Hoje, eu, já com o grisalho nos cabelos, me preocupo com suas artérias entupidas. Você está além do peso, já supera os três milhões de habitantes, e não para.
A proposta de você ser uma cidade parque, sem poluição, com qualidade de vida, vem sendo abandonada. Ninguém pensa em te preservar, em te modernizar. Nada disso. Insistem em criar mais e mais aglomerados urbanos, querem até lotear aquele modelito, o Plano Piloto, que Lúcio Costa desenhou pra você.

Fim de tarde em Brasília. Foto de Ronaldo Silva

Transporte: só carro individual e ônibus super lotado. Querem até fazer um garajão na Esplanada.
Nada de linhas de metrô, vlt, e trem para as cidades mais distantes.
Para agüentar tanto trânsito, recantos bucólicos, que marcaram nosso caminhar juntos, como o Balão do Aeroporto, desapareceram.

Desculpe a sinceridade, minha irmã caçula, mas embora estejas com apenas 54 anos, a idade já te afeta.
Sua cor, já não é mais aquele verde dos gramados, das áreas verdes. Prevalece o cinza do concreto e o negro do asfalto. Seu horizonte, seu céu com tons que variam do roxo ao amarelo, já são recortados por prédios de até 30 andares.

O que estão fazendo contigo, Brasília?
Reaja, minha irmã.
Nossos filhos e netos já não mais podem brincar debaixo dos blocos, nem ir a pé ao colégio. Passear nas ruas e quadras após o escurecer é tentativa de suicídio. As escolinhas públicas que você guarda com tanto carinho nas quadras, correm o risco de serem privatizadas.
A Água Mineral está sob ameaça de um novo bairro por de trás da Rodoferroviária e, quem for ao Tororó, corre o risco de lá não encontrar água, mas sim uma cidade chamada de OKlândia.

Brasília, atenção com a sua Saúde, ela já foi exemplo nacional, hoje envergonha a muitos. Brasília, atenção também à limpeza, está deixando a desejar.
Você precisa de mais Educação. Não só nas escolas, mas também no dia-a-dia, sua violência nos assusta.
E em pensar que quando éramos jovens, as casas não tinham cerca, nem grades.

Vista aérea do Plano Piloto; Foto de Bento Viana

Brasília, pareço um irmão mais velho chato, mas saiba que eu e muitos outros, que com você crescemos, estamos de cabelo em pé. Não caia no discurso fácil do descaminho.
Seja aquela que todos aprendemos a amar e a defender.
Quando diziam que você era fria e sem esquina, éramos os primeiros a levantar a voz em sua defesa.
E hoje, mais do que nunca, no seu aniversário, estamos aqui, pra juntos cantar o parabéns e juntos te desejar vida longa.

Brasília, minha irmã caçula, você está entre amigos que te querem.

Feliz Aniversário!

* Em Brasília desde abril de 1958.