
Por Chico Sant’Anna*
Quando você nasceu, Brasília, eu já dava os primeiros passos, aqui mesmo, no Planalto Central. Crescemos juntos, como se você fosse minha irmã caçula.

Quando o Lago Paranoá começou a encher, para te dar um clima mais ameno, eu estava aqui. Assisti a Gilda e a Pioneira, as primeiras lanchas da Capital, navegarem em suas águas. Fizemos muitas pescarias juntos, mas só dava Cará. Depois é que apareceram os tucunarés.

Para te compor, foram surgindo as quadras muitas com recursos dos institutos previdenciários. Tinha a do IAPB, IAPC, IAPETEC, IPASE, do Banco do Brasil, da Marinha, da Aeronáutica, da Câmara Federal, da Fundação da Casa Popular.
Janio quis acabar com a Cidade Livre. Transferiu os comerciantes e moradores para a Asa Norte.
Você foi mais forte: Jânio caiu, graças às forças ocultas, permaneceu o Núcleo Bandeirante e a Asa Norte deu os primeiros passos para se consolidar.
Mais tarde, da Invasão do IAPI, dos Morros do Querosene e do Urubu, das Vilas Tenório, Esperança, Bernardo Sayão e Colombo, Curral das Éguas e Placa das Mercedes, vi você construir a Ceilândia, parte dela, na antiga Fazenda Guariroba. Dai o nome de Guariroba a um dos setores da cidade.
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Você foi ganhando contornos de adolescente e depois de menina moça. Suas ruas, quadras e avenidas consolidadas, suas áreas verdes lhe deram forma.
Me botou pra correr várias vezes, com os “graminhas” que não deixavam jogar bola nas entrequadras.
Quando suas avenidas W.4 e W.5 Sul ganharam asfalto eu lá brincava entre os tratores. As máquinas eram nossos play grounds. Caminhão era o balanço, trator, a gangorra.
Brasília, te vi ganhar corpo: sua L.2 foi duplicada, a W.3 Norte foi interligada a Sul e, mais tarde, nasceu e o Parque da Cidade. As tesourinhas ganharam alças dos dois lados dos viadutos e todas elas passaram a insteligar o seu lado [W] Oeste ao seu lado Leste.

Você nem tinha completado quatro anos de existência e os tanques do Exército tomaram suas ruas. Trafegaram pela W.4, pensei que era parada cívica, até vê-los estacionados nos gramados do Congresso Nacional, onde hoje você abriga festas e shows.

Em 68, ao completar seu oitavo aniversário, os militares entram na sua universidade. E sem vestibular. Você foi palco para que secundaristas marchassem pela W. 3, do Elefante Branco até a 710, onde funcionava o Usis e a Thomas Jefferson.
A UnB invadida, revelava lideranças como Honestino e você ja se destacava nacionalmente na luta pela democracia.

Nosso teatro era o da Escola Parque, depois, Galpão e Galpãozinho. Tinha ainda o Cine Cultura. Era o triangulo cultural da cidade. Tudo ali, na 508 e 507 Sul.
Festival de Brasília: assistíamos no Cine Atlântida e, é claro, no Cine Brasília. Pelas suas ruas, curtimos as 24 horas de Brasília, com a curva do paredão da rodoviária.
A Loteria Esportiva ainda nem existia e já torcíamos pelo Rabelo, pelo DFL (Defelê), pelo Ceub, nos gramados do Pelezão e, depois, no primeiro Mané Garrincha. Em 70, lotamos as ruas e a Praça dos Três Poderes para comemorar o TRI.
Brasília, vi que você, ao longo desses anos, perdeu parte de suas raízes. Seu comércio, tocado pelos pioneiros desapareceu: Solomaq, Moplan, Itabrás, Brasilar, Serve Bem, Bi Ba Bo, Fofi…, O Cine Bruni, com aquela super pista de autorama, desapareceu. A lanchonete da Kibon, na Rua do Hospital Distrital, a Flamingo, a Confeitaria Santa Clara, a Maloca Querida, até mesmo o Chaplin e, seu vizinho, Cine Karim, não resitiram.
Aos poucos, você foi perdendo aquele toque de menina do interior e ganhando ares de cosmopolitana.

Também seus construtores, desbravadores, não conseguiram sobreviver às crises econômicas que o Brasil tanto viveu.
Kosmos Engenharia, Rabelo, Eldorado, Pederneiras e tantas outras.
Aos poucos, cada uma delas fechou seu canteiro de obras e deixou de colocar mais um tijolo na sua história.

Mas minha irmã, você nunca perdeu a sua combatividade. Mesmo sob o regime dos generais, você comandou o coral uníssono do “Como Pode o Juscelino Viver Fora de Brasília”, quando aqui os militares não queriam que seu pai fosse enterrado.
Em 1977, seus universitários voltaram a reivindicar liberdades democráticas. A irreverência crítica nos levou a fundar o Pacotão e com a sua obstinação cívica, fomos juntos às ruas brigar pela sua autonomia política, pelas Diretas Já, pela Constituinte. Pintamos nossas caras para derrubar um presidente que nos enganou. Mobilizamos-nos para afastar um governador que nos ultrajou.

Você, menina moça, passou a ser cada vez mais cobiçada.
Mas nada de relacionamento sério. Esta turma, que chegou depois, só queria “ficar” e depois cair fora com o bolso cheio.
No lugar dos engenheiros desbravadores, comprometidos com o seu futuro, brotaram as ervas daninhas da especulação imobiliária.
Brasília, minha irmã caçula, o tempo passou e foram muitas as transformações, mas nós dois continuamos aqui juntos.
Hoje, eu, já com o grisalho nos cabelos, me preocupo com suas artérias entupidas. Você está além do peso, já supera os três milhões de habitantes, e não para.
A proposta de você ser uma cidade parque, sem poluição, com qualidade de vida, vem sendo abandonada. Ninguém pensa em te preservar, em te modernizar. Nada disso. Insistem em criar mais e mais aglomerados urbanos, querem até lotear aquele modelito, o Plano Piloto, que Lúcio Costa desenhou pra você.

Transporte: só carro individual e ônibus super lotado. Querem até fazer um garajão na Esplanada.
Nada de linhas de metrô, vlt, e trem para as cidades mais distantes.
Para agüentar tanto trânsito, recantos bucólicos, que marcaram nosso caminhar juntos, como o Balão do Aeroporto, desapareceram.
Desculpe a sinceridade, minha irmã caçula, mas embora estejas com apenas 54 anos, a idade já te afeta.
Sua cor, já não é mais aquele verde dos gramados, das áreas verdes. Prevalece o cinza do concreto e o negro do asfalto. Seu horizonte, seu céu com tons que variam do roxo ao amarelo, já são recortados por prédios de até 30 andares.
O que estão fazendo contigo, Brasília?
Reaja, minha irmã.
Nossos filhos e netos já não mais podem brincar debaixo dos blocos, nem ir a pé ao colégio. Passear nas ruas e quadras após o escurecer é tentativa de suicídio. As escolinhas públicas que você guarda com tanto carinho nas quadras, correm o risco de serem privatizadas.
A Água Mineral está sob ameaça de um novo bairro por de trás da Rodoferroviária e, quem for ao Tororó, corre o risco de lá não encontrar água, mas sim uma cidade chamada de OKlândia.
Brasília, atenção com a sua Saúde, ela já foi exemplo nacional, hoje envergonha a muitos. Brasília, atenção também à limpeza, está deixando a desejar.
Você precisa de mais Educação. Não só nas escolas, mas também no dia-a-dia, sua violência nos assusta.
E em pensar que quando éramos jovens, as casas não tinham cerca, nem grades.
Brasília, pareço um irmão mais velho chato, mas saiba que eu e muitos outros, que com você crescemos, estamos de cabelo em pé. Não caia no discurso fácil do descaminho.
Seja aquela que todos aprendemos a amar e a defender.
Quando diziam que você era fria e sem esquina, éramos os primeiros a levantar a voz em sua defesa.
E hoje, mais do que nunca, no seu aniversário, estamos aqui, pra juntos cantar o parabéns e juntos te desejar vida longa.
Brasília, minha irmã caçula, você está entre amigos que te querem.
Feliz Aniversário!
* Em Brasília desde abril de 1958.
Viver aqui ainda é algo maravilhoso!
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Brasília cidade que sempre despertou muitas alegrias desde que aqui cheguei em 1977. Cidade verde e crescendo como nunca mas atentos pra não perdermos a qualidade de vida dos seus moradores.
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parabéns pela Carta a Brasília, minha irmã caçula.
obs.: que não disse “o seu comentário aguarda moderação”??apareceu acima
????
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Lindo texto! Emocionante. Parabéns Brasília! Também amo a minha cidade e quero ela linda novamente. Saudades da nossa Capital da minha infância. O que fizeram com ela?
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Muito legal o texto, inclusive compartilhei. Apenas acho que o saudosismo, saudável e legítimo, não vai trazer de volta a cidade de outrora. Precisamos de novas soluções para novos tempos.
Belo texto, parabéns!
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Chico, que seu inspirado texto pelos 54 anos de Brasília ajude à reflexão de todos nós! Sou daqueles que acha que há saídas diante do caos programado pelos sucessivos governos Roriz, Arruda, Rosso, Agnelo Queiroz e de seus consorciados da iniciativa privada. Espero que nosso povo reaja à bandalheira reinante na capital do país! Apesar de tudo, VIVA BRASÍLIA E SEU POVO! NOVOS E MELHORES DIAS HÃO DE VIR PARA TODOS!
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Amém, amém, Toninho!!!! Aguardo ansiosa por melhores dias!!!
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Maravilhoso! Emocionante. Quero minha cidade linda, limpa e segura. Quero a Brasilia modelo para o Brasil.
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Lindo e relevante texto. Amei a sensibilidade profunda do autor Chico Sant, Anna. Já amava Brasilia, e hoje, ainda mais, muito mais. Sempre que tenho a oportunidade, gosto de voar pelas paralelas e parabólicas ,desta Capital alada. O relevo, o clima, os portais palacianos, o cenário nobre, hó Brasília por ti sonho, por ti almejo, em ti ainda serei feliz! Railda Botelho
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Chico,
Muito bonita sua carta à irmã caçula. A memória Chico, ela nos mantém vivos, românticos, analógicos, num mundo de descontinuidades, acionado por seres digitais e noosféricos. Para sermos contemporâneos desse estado da arte, precisamos de uma história que nos ajude a compreender e a conviver com as “descontinuidades”. As linearidades da vida social e da própria existência estão sendo rompidas gradual e lentamente. Você tem a sua história, eu a minha. Fui o primeiro guarda florestal da Água Mineral (hoje Parque Nacional, que ajudei a fundar). Vasculhei a vegetação do cerrado no DF , colecionando excicatas como auxiliar de pesquisa do botânico Ezechias Heringer, um dos últimos naturalistas brasileiros. Vi a cidade crescer e meus espaços – até os das safadezas – serem ocupados por gente e edificações que nada tinham a ver com os sonhos e a mística de candangos e pioneiros. E tem sido assim que, gradativamente, eles vão sendo desconstruídos. Certamente, com eles, a nossa alma. Mas ainda estamos aqui, felizes, e capazes de entender e prontos para amar os rizomas (Deleuze) que brotam das raízes originais. Sua irmã é uma rizoma, uma brasiliense de raiz.
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Meu irmão em Brasília, Chico, você disse quase tudo, só faltou o que você não teve condições de vivenciar porque era tão menino. Meninos, eu que cheguei em 1959, já com meus 15, vi e vivi o mais bonito de todos os tempos: a solidariedade das pessoas, especialmente dos moradores das cidades -satélites expulsos da capital que construíram. Resistiram e, em 1958, quando os governantes resolveram que aqui não cabia mais gente e eles tinham que voltar para suas terras de origem, ousaram a primeira desobediência civil do DF e criaram Taguatinga. Parabéns pra você também pelo texto e por continuar aqui, firme e forte, dando estes presentes para a gente.
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