
Texto e Fotos por Chico Sant’Anna
Em quase todas as grandes cidades do mundo existe um bairro em que a história foi preservada. No Rio de Janeiro, é Santa Tereza e a Lapa; em Paris, o Cartier Latin; em Istambul, o distrito de Sultanahmet; em Guayaquil, no Equador, o bairro Las Penas, e em Valparaíso, Chile, os Cerros Baron e Concepción. Normalmente, com ruas pequenas e tortas, são espaços que no passado abrigaram trabalhadores, operários, vilas de pescadores.

Hoje, são espaços onde o estilo das construções foi mantido, o urbanismo inalterado e preservado da ação especulativa imobiliária. Essas localidades, além de guardarem a memória das metrópoles em que se inserem, acabam se transformando em pólos turísticos, atraindo visitantes de todas as partes. Em comum, entre eles, a vocação para abrigar restaurantes, ateliers, butiques galerias de artes, pequenas pousadas, estúdios, atividades com alto poder atrativo turístico e que guardam o charme do local. Assim, eles formam o que alguns especialistas chamam de bairro boutique.
Brasília não possui o seu bairro boutique. Apesar da curta existência, a cidade não soube preservar sua memória espacial. O Núcleo Bandeirante e a Candangolândia poderiam ter sido este bairro. Mas a ação do tempo e o descaso do homem descaracterizaram os dois locais. Frutos da especulação imobiliária e da cobiça em fazer dinheiro fácil e rápido. Sobrou, apenas, o pequeno Museu da Memória Viva de Brasília.

Quem mora há mais tempo em Brasília, há de se lembrar do Hotel Rio de Janeiro, na entrada principal da Cidade Livre, dos restaurantes típicos. Também ficaram perdidos na memória os sobrados de madeira de dois andares que foram substituídos por casas de alvenaria.
Dirão alguns que não há como impedir a ação do tempo e do desenvolvimento. Mas não é sempre assim. Para se ter uma idéia, o distrito de Sultanahmet,

em Istambul, que foi a capital dos antigos Impérios Otomano e Bizantino, guarda até hoje, aos pés das milenares muralhas, as casas de madeira que abrigaram soldados ingleses na virada do século XIX para o XX. Hoje essas casas abrigam refinados restaurantes e galerias de artes. É destino obrigatório dos turistas em uma cidade que, em 2007, sozinha atraiu o dobro de turistas que vieram ao Brasil.

Não precisamos ir longe. Em Guayaquil, terra do temido time de futebol do Emelec que muita dor de cabeça já deu às equipes brasileiras que disputam a Libertadores das Américas, o bairro Las Penas, na parte baixa do Cerro de Santa Ana, outrora zona portuária é hoje exemplo mundial reconhecido pela Unesco de recuperação de um espaço urbano e da conseqüente valorização do ser humano que lá vive.

No final do século XIX era o abrigo de pescadores e artesãos. Depois passou por uma fase de decadência, tendo abrigado marginais e casas de prostituição, hoje transformadas em ambientes de requintes. Entre 2002 e 2008, o bairro passou por um processo de revitalização. O custo do metro quadrado foi às alturas sem que uma parede de madeira tenha sido derrubada. Moradores mudaram de padrão de vida sem sucumbir ao canto fácil dos especuladores imobiliários. A população de Guayaquil ganhou um espaço agradável e uma fonte de renda para a cidade e seus moradores.
Olhando para Brasília, creio que a Vila Planalto é hoje quem tem as melhores qualificações para ser este bairro boutique. É ela quem reúne os predicados para ser este espaço da memória viva da cidade. Como nos exemplos anteriormente citados, a Vila pode abrigar galerias de artes, ateliers, restaurantes, pousadas charmosas e ao mesmo tempo preservar a sua história e a da Capital Federal.

Vila Planalto
Para isso, contudo, é necessário não apenas um projeto de revitalização, mas principalmente uma mudança cultural. Faz se necessário um novo olhar. É sabido que pela proximidade com o centro de Brasília, o metro quadrado da Vila é muito valioso. Tem empresa, e até políticos, que gostariam de colocar tudo abaixo e construir prédios de apartamentos. Mas de nada adiantará fazer edificações com dois, três ou mais andares. O charme da Vila é exatamente o fato dela ser vila. É este encanto, com suas ruas tortas, que atrai diariamente multidões aos restaurantes, como o da Tia Zélia, que instalam suas mesas sob o belo céu de Brasília.
A Vila Planalto não pode cometer o mesmo erro histórico que o processo de urbanização provocou no Núcleo Bandeirante e na Candangolândia. A vocação da Vila é o turismo, é o laser. Com eles, seus moradores poderão ter um bom padrão de renda, emprego, qualidade de vida. Mas para isso, eles precisam preservar a sua cidade. Precisam coibir as edificações que deformam a história. Deformada, a Vila perderá seu diferencial em relação aos demais bairros e cidades de Brasília. Será um canto como outro qualquer.
Além da memória de Brasília, a Vila tem um tesouro na mão.
Cabe a ela saber usar com inteligência este diferencial.
Uma ideia bem legal, Chico. Pena que os urbanistas que já se dedicaram à Vila não pensem de forma tão simples (no melhor sentido) e sustentável. Um bairro “botique” teria poderosas limitações ao seu crescimento, mas que seriam extremamente benéficas às finalidades de seu comércio, de sua vida cultural. Sustentabilidade é mesmo coisa assim: modesta, redondinha, sem aloprações. E esse é o problema que enfrentamos: os nossos empresários são uns ALOPRADOS e botam tudo a perder rapidinho com sua ânsia de aumentar seu poder de barganha imobiliária, sua “pega” sobre a cidade. A ideia é excelente e tem uma série de implicações que podem ser discutidas na Vila, tomando umas geladinhas.
CurtirCurtir
Um bairro como os que você cita não surge por decreto, aparece por uma vocação, pelos talentos do lugar. Não vejo isso na Vila Planalto. De qualquer forma, seria bacana ter um levantamento das manifestações culturais ali, sei que a culinária é forte…abs
CurtirCurtir
Adorei o texto e já recomendei no face! Fiquei só com mta vontade de conhecer os bairros que vc citou e ainda não tive chance de ir. Bjs Chico!
CurtirCurtir
Carla,
Os locais são lindos mesmos. Alguns tiveram que ser todos recuperados. Programa suas próximas férias.
CurtirCurtir
Rachel Mello
A Vila já possui artistas plásticos, uma gastronomia de qualidade. O que precisa é da definição de rumo, algo que dê outra opção aos moradores que não seja a especulação imobiliária.
CurtirCurtir
Parabéns Chico, gostei muito do texto, das observações. E concordo com o bairro boutique. Me lembrei de Plaka, onde as lojinhas e restaurantes ficam emparelhados nas ruas e vielas cheias de turistas. A vila tem um “Q” de poesia, e a gastronomia, sim; é simples e nos envolve, querendo que fiquemos arraigados a ela por fidelidade…como em tantos outros lugares do mundo. Lembro da Tia Zélia…simples e cheio de temperos…
CurtirCurtir
É uma ideia a ser analisada, mas a Vila tinha um tesouro na mão…..suas edificações de madeira além de bonitas eram ecológicas, madeira é energia renovável. Hoje a vila tem uma arquitetura que está longe de ser exemplo e de poder torna-se algo que chame a atenção do turista. O que a população da vila quer? A inevitável gentrificação torna a situação mais complexa. A especulação imobiliária não tem limites numa cidade onde as normas e leis não são respeitadas e a CLDF estimula ocupações de áreas públicas (puxadinhos). Somente com uma população muito solidária um planejamento urbano desta qualidade poderá dar certo e frear a especulação.
CurtirCurtir