A notícia não poderia ser pior.
A conceituada revista National Geographic, em sua edição on-line, apresenta Brasília, patrimônio histórico da humanidade, como detentora do maior lixão a céu aberto da América do Sul.
Ricamente ilustrada com 13 fotos, a reportagem de autoria de Marcio Pimenta mostra o cotidiano do local que o brasiliense conhece como Lixão da Estrutural, mas que a reportagem identifica como Lixão do Jóquei. Lá, de seis a oito toneladas de resíduos sólidos são jogados diariamente no local. Segundo a reportagem, há inclusive lixo hospitalar, como seringas já utilizadas.
Para uma cidade que busca ser um polo de atração de turistas, inclusive estrangeiros, a triste realidade divulgada para o mundo pela National Geographic é uma ducha de água fria. Mas ela é mais um puxão de orelha nas autoridades locais. Até hoje, entra governo, sai governo, o GDF não consegue implantar um sistema efetivo de coleta seletiva.
Confira abaixo a íntegra da reportagem da National Geographic
Sujeira em Brasília
O dia a dia do maior lixão a céu aberto da América do Sul
NATIONAL GEOGRAPHIC BRASIL ONLINE | Por: Marcio Pimenta
Brasília é quente, seja pelo clima ou por ser o epicentro das decisões políticas de uma das maiores economias do mundo. Não há muita sombra para se proteger do sol e nem se poupar das conversas. Aqui, tudo e todos, parecem aspirar ao poder. As conversas nos bares e restaurantes, no café do restaurante do Senado, na beira do lago, enfim, em cada quadra fala-se compulsivamente em economia política. É uma cidade de forasteiros, que buscam aqui uma oportunidade de servir ao poder. O motorista que me leva até o local da minha pauta é gentil e me poupa de conversas sobre política. Liga o ar-condicionado e me oferece uma água gelada. O trajeto não é tão longo, mas ele tem tempo para me contar que dirige durante o dia e é cantor gospel nos fins-de-semana. Vitor, o motorista, por coincidência foi o mesmo que me buscou na noite anterior em um restaurante de luxo da cidade, onde estive na condição de convidado, claro. Foi naquela oportunidade que havia contado a ele que era fotojornalista, então, quando me reencontrou ficou animado em saber qual seria a pauta em que eu iria trabalhar. “Comecei a dirigir recentemente, e agora, por causa dos passageiros, estou conhecendo toda a cidade. Mas nunca ouvi falar neste lugar que estou te levando, o que tem lá?”, me pergunta com um misto de curiosidade e preocupação. “É perigoso?”, não se contém em me indagar. Respondo que não faço a menor ideia, pois assim como ele, eu também nunca estive lá antes. Mas tento tranquilizá-lo dizendo de que no Congresso Nacional há pessoas mais perigosas que em nosso destino. Ele pareceu gostar.
A preocupação de Vitor é legítima. Estamos indo para a Estrutural, um dos bairros mais violentos do Distrito Federal. É lá que está o Aterro Controlado do Jóquei, também conhecido como “Lixão do Jóquei”, de responsabilidade do governo do Distrito Federal. Estamos há apenas 15 km de distância da Praça dos Três Poderes. É o maior lixão a céu aberto da América Latina. Nele trabalham – as fontes divergem – entre 600 a 2 600 pessoas. É o senhor João quem nos recebe. Ele destaca um funcionário para me guiar pelo local. Vitor prefere ficar no carro estacionado sob a sombra de uma mangueira.
Há poeira para todo lado. Caminhões de lixo e tratores trafegam em um ritmo frenético, trazendo todo o lixo da cidade de Brasília. A área tem 200 hectares, completamente cercada, e atinge uma altura de até 50 metros de puro lixo. É o destino de 100% do lixo coletado no Distrito Federal. Em números isso significa 2,8 mil toneladas de Resíduos Sólidos Urbanos por dia e entre 6 mil e 8 mil toneladas de resíduos da construção civil. Rapidamente avisto os primeiros catadores de lixo. E também pombas, ratos, urubus e moscas. “Eles não gostam de ser fotografados”, me avisa o meu guia, Israel. Desço do carro e começo o meu trabalho. Apesar das recomendações da assessoria de comunicação do Serviço de Limpeza Urbana sobre itens de segurança que eu deveria usar, me recuso a colocar a máscara de proteção. Seria ofensivo eu me encontrar protegido enquanto os catadores trabalham sem a proteção que me recomendaram. Prefiro então estar como eles. Israel apenas me observa. Talvez isso tenha ajudado a me aproximar destes trabalhadores. Eles também ficam contentes ao ver que sigo junto com eles por trás de um trator que esmaga com suas esteiras o lixo que será recolhido por eles. “É perigoso, vá com cuidado”, me alerta um deles. Também deve-se ficar atento onde se pisa. Seringas, facas e outros objetos perfurantes e cortantes são mais comuns do que se imagina. Isso sem se falar em vidros. Mas reciclar é preciso. No artigo Profissão: Catador, publicado pela National Geographic Brasil, na edição Especial Lixo, de 2013, destaca-se que a estimativa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), é que no Brasil existem 600 mil catadores e que eles são responsáveis por 90% dos resíduos que foram recuperados. O catador é, portanto, peça fundamental. Muitos sentem vergonha de estarem recolhendo lixo. Mas não deveriam, sem eles, todos nós estaríamos em apuros. Mas a discriminação existe. E esta é a razão pela qual não gostam muito de fotógrafos.
Mas hoje eles parecem à vontade. “Achei uma boneca!”, vibra uma das catadoras. “O que fará com ela?”, pergunto imediatamente. “Esta vou levar para a minha filha”, e sorri. A catadora, que preferiu não dizer o nome, tem 30 anos, é magra e assim como os demais está quase que completamente coberta com roupa e uma máscara improvisada feita de tecido. O pouco que posso ver são seus belos olhos escuros e uma pele ainda jovem e delicada. Ela chega ao trabalho quando ainda está amanhecendo, “para me poupar do sol”. E retorna para casa para cuidar das crianças na volta da escola. Ela, assim como os demais, não tem salário fixo, e como são autônomos dependem da produção. Eles me contam que ganham por volta de R$ 1.200 a R$ 1.500 por mês. E o futuro os preocupa. No segundo semestre deverá entrar em operação o Aterro Sanitário Oeste, um projeto moderno e elaborado com estudos de impacto ambiental, e com isso o Lixão do Jóquei será desativado.
A cerca, que tem o objetivo de evitar a entrada de pessoas que não estão ligadas à atividade, não impede o acesso de crianças. Quase sempre sozinhas, elas tentam ganhar algum dinheiro para ajudar suas famílias. Mas sempre que flagradas são retiradas pelos funcionários do aterro ou até mesmo conduzidas de volta às suas famílias.
Algum tempo depois, retorno para a portaria e reencontro o meu motorista. Vitor imediatamente liga o ar-condicionado. “Olha, ontem busquei o senhor num restaurante de luxo e hoje o senhor veio trabalhar no lixo… que loucura!”, diz ele já nos conduzindo de volta ao centro de Brasília. “Sabe, enquanto você estava lá fotografando, fiquei contando quantos caminhões entraram para deixar o lixo no aterro. Perdi a conta. Produzimos lixo demais!”, se espanta ele. “Nos restaurantes por exemplo, cada canudo, cada plástico para enrolar canudos, guardanapos, talheres… é mesmo necessário tudo isso?”, enquanto me oferece mais uma água gelada num copo plástico. Dispenso desta vez, seria um luxo desnecessário.