Uma viagem (de ônibus) a Santa Maria
Texto e fotos por Raíssa Abreu*
Assim que soube que haveria um debate sobre transporte público no DF em Santa Maria, promovido pelo portal Congresso em Foco, imaginei que parte da discussão seria sobre como os participantes haviam chegado lá… Nos meus 13 anos de Brasília, nunca havia ido a Santa Maria. No caminho, resolvi que registraria a experiência. Esse é o meu caderno de viagem.
Sábado, 20 de janeiro de 2018
11h05 – Saí do Paranoá, onde moro, no ônibus 764.2, em direção à Rodoviária do Plano Piloto. Ônibus tranquilo, até deu pra sentar, coisa que, durante a semana, não acontece quase nunca.
11h30 – Na Rodoviária do Plano, os fiscais me confirmaram que existia um BRT que ia direto para Santa Maria. Fui até a plataforma dos BRTs e vi que só poderia embarcar com o cartão Brasília + Cidadã, aquele do bilhete único, o verdinho. O meu estava sem crédito…
Aliás, uma das maiores reclamações dos moradores de Santa Maria, como fiquei sabendo logo em seguida, é a dificuldade para recarregar o cartão cidadão fora do Plano Piloto. Inclusive, aumentar o número de postos de venda de créditos foi uma das sugestões encaminhadas ao GDF.
No caminho até a bilheteria do metrô, onde dava para carregar o cartão, me lembrei do Moovit, aquele aplicativo que promete oferecer ao usuário “tudo” o que ele precisa sobre transporte público. Achei interessante. Eles têm informações sobre horário e local de partida dos ônibus e avisam quando você se aproxima do ponto de descida.
Mas o Moovit está longe de oferecer “tudo” o que quem anda de ônibus e metrô precisa saber. Como lembrou o Rodrigo Chia, do Observatório Social de Brasília, o Moovit é um aplicativo privado, que funciona a partir dos dados que algumas das empresas de transporte que prestam serviços ao GDF fornecem. Todas essas informações, e não apenas as do GPS dos ônibus, deveriam ser públicas. Mas não é o que acontece.
Vamos retomar isso. Voltemos ao trajeto.
Perdi o ônibus seguinte, que o Moovit recomendava, porque o horário de partida indicado não batia com o relógio do motorista. O próximo, só em 40 minutos, dizia o aplicativo. Mas, comendo um pastel com caldo de cana, percebi que chegava um ônibus mais ou menos a cada 10 minutos naquela baia. O cara da roleta confirmou que era isso, mesmo. O mesmo cara que quase me mandou para o Gama. Fui salva por uma passageira, com quem quis confirmar o destino do ônibus em que havia entrado (coisa que sempre faço, aliás).
12h27 – Rumo a Santa Maria, num TR 26 lotado. Se no sábado está assim, como deve ser durante a semana?, pensei.
Minha primeira vez num BRT. Ele é menor do que eu esperava. Achei que os BRTs fossem maiores que aqueles outros biarticulados que circulam pela cidade. Mas não, eles só são um pouco mais altos, por que têm três níveis. Os degraus viram assentos extras e podem até dar a impressão de que as pessoas estão menos espremidas. Mas eles também dificultam o fluxo dos passageiros dentro dos veículos e aumentam o risco de acidentes.
13h10 – Chegada ao Terminal Santa Maria. Fico sabendo que ainda terei que pegar outro ônibus pra chegar ao Ginásio Poliesportivo, o local do evento, no centro da cidade. Deixo os apps de lado e me guio pelos métodos tradicionais. Depois de uma certa confusão entre poliesportivo e centro olímpico, apurei que meu ônibus era o 250. Em 10 minutos, às 13h25, eu estava no meu destino.
O debate foi excelente. Superou a minha expectativa de encontrar um espaço para compartilhamento dos meus incômodos como usuária do transporte público – público não, coletivo, como aprendi com os representantes do Movimento Passe Livre – e de busca de soluções. Apesar de ter sido provocado por moradores de Santa Maria, com a mediação do portal Congresso em Foco, muito do que foi discutido e encaminhado ali diz respeito a todo o DF, principalmente às periferias.
Chamou muito a minha atenção a nuvem de mistério que ronda a questão contratos do GDF com as empresas de transporte. Quais são as obrigações devidas por essas empresas? A qualidade dos serviços prestados interfere nos seus ganhos? Que tipo de fiscalização o governo realiza sobre esses serviços? Quais são as penalidades previstas? Cadê os contratos, que nem o Observatório Social conseguiu?
A falta de controle social, de voz da população nos fóruns oficiais que tratam do tema, também não faz nenhum sentido. Como questionou o representante do Movimento Passe Livre, como é que um técnico em transportes que não anda de ônibus vai entender mais de transporte coletivo que um usuário do serviço?
Fiquei um pouco chateada por calcular que, das cerca de 40 pessoas que passaram por ali, umas 13, talvez, sejam de fato usuárias do transporte coletivo. Eu me incluí entre as 13, mas não sou, digamos, uma usuária “diária”. Não dirijo, mas pego muita carona e ainda recorro ao Uber com muito mais frequência do que gostaria e poderia.
Por que a gente não usa mais o transporte coletivo?
Porque, quando você mais precisa dele (você e todo mundo ao mesmo tempo), o ônibus demora a passar. Quando chega, a fila pra entrar já está enorme, cheia de gente tensa, atrasada para os compromissos. Ou cansada, depois de um dia de trabalho, na vã esperança de conseguir um lugar para sentar.
É aí que surgem os problemas, a irritação – no meu caso, com os espertinhos que furam fila, jurando que o tempo deles vale mais que o dos outros. E, se você reclama, o cobrador acha graça.
Essa é a linha Rodoviária-Paranoá via Ponte JK, o famoso 764.2, todos os dias, especialmente depois das 17h. Mas essas cenas não são privilégio de quem mora no Paranoá. A falta de solidariedade entre os usuários, e a falta de preparo por parte dos funcionários do transporte no trato com as pessoas e na resolução de problemas que surgem durante as viagens também foi tema de reclamações e encaminhamentos em Santa Maria.
Mas, se algumas pessoas são pouco solidárias, a maioria age de forma diferente. Como o senhor que estava sentado na viagem de volta ao Paranoá e se ofereceu para carregar a minha bolsa. Ou os muitos que cedem seu lugar a quem precisa. E todos os que me deram as informações sobre o trajeto. Mesmo aquelas pessoas que tiveram dúvidas acabaram contribuindo para que eu chegasse à resposta correta. Foi graças a elas, e não a algum aplicativo ou informação de governo, que eu não me perdi a caminho de Santa Maria.
Passei pela linha 764.2 naquele sábado, por volta das 19h30, no retorno do debate. A saída de lá, às 18h, foi bem tranquila. Peguei o 250 em frente ao ginásio e, em seguida, o TR 25 quase vazio, rumo à Rodoviária. Cheguei em casa às 20h, nove horas depois de ter saído. Gastei R$ 19,50 em passagens.
Eu decidi participar do evento em Santa Maria, minha aventura de sábado. Mas é óbvio que, para a grande maioria das pessoas que andam de ônibus no Distrito Federal, isso não é escolha, muito menos diversão. Nem opção ambientalmente sustentável.
Outra diferença fundamental: se eu conseguisse me movimentar pela cidade usando apenas o transporte coletivo, isso representaria uma baita economia, se compararmos com meus hábitos de locomoção atuais. Pra quem depende desse serviço, o preço da passagem é um abuso, que deve consumir uma parte muito significativa do orçamento doméstico.
É por isso que andar de ônibus, mesmo que não seja todo dia, precisa ser uma prática de cidadania. Porque a melhoria dos serviços de transporte no DF depende da utilização desses serviços por quem não precisa deles. E, quando eu digo melhoria, eu penso naquele momento em que as pessoas vão desejar deixar o carro em casa para usar o transporte coletivo.
Parabéns aos moradores de Santa Maria e ao Congresso em Foco pela iniciativa.
*Jornalista e usuária de ônibus e metrô.
Ótima matéria da Raíssa, Chico. Passei por curta experiência semelhante à que ela relata. Deixei meu carro numa oficina na Asa Sul e retorno para a UnB, onde o outro carro da família estava, com minha filha. Andei muito de ônibus no DF nos anos 80 e posso dizer com tranquilidade: hoje está muito pior. Fico muito triste com isso, porque significa que está havendo uma deterioração do que não era muito bom. Estamos na “Capital da República”, de onde deveriam emanar as boas soluções para os problemas nacionais. Eu gostaria muito de ter no nosso Park Way alternativas que me fizessem querer deixar o carro em casa, reduzir o número de carros por família (não só por questões de economia, mas de cidadania) e parar de entupir as artérias do trânsito com tantos veículos transportando em sua maioria um só passageiro. Eu devo ser “um sonhador” mas não devo ser “the only one”. Chego a ficar espantado com a falta de sensibilidade ou de compreensão com relação a esse problema, crucial para a maioria da população, não só a da Ceilândia, do Gama ou de Santa Maria, mas também de todo esse imenso Park Way.
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Pois é, Marcos. Acho que a ideia de que ter um carro é progredir na vida atrapalha muito na busca de soluções pra mobilidade urbana. Te convido a deixar o carro em casa mais vezes. Que tal?
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A incompetência (seria incompetência mesmo ou…) do governo no trato do transporte coletivo é um assombro. Realmente a jornalista Raíssa Abreu foi feliz em seu texto sobre a infelicidade dos cidadão que andam de ônibus em Brasília. Seja o povo de Santa Maria, Paranoá, Ceilândia, Taguatinga, Brazlândia, Gama e também de todas as demais regiões administrativas.
A incompetência dos gestores do sistema é tão grande que é difícil alguém acreditar que é somente incompetência.
Mas vou apenas atestar um dos aspectos abordados no debate sobre transporte público que aconteceu em Santa Maria e que Raíssa muito bem lembrou. A dificuldade do usuário do serviço de transporte público carregar o cartão. E aí cito o caso do Gama. Outro dia, passando pela Rodoviária do Gama, tive a curiosidade de visitar o posto do DFTrans. E eis que três cartazes em folha ofício estavam afixados. O que diziam? Informavam que naquele posto se resolvia apenas questões de ‘Passe Livre Estudantil’. Nada mais. Computadores, pessoal e nada de emitir cartão, ou até mesmo fazer o cadastro de usuários que não fossem do passe estudantil. Incompetência? Ou ação intencional?
Responda quem quiser.
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Que belo texto para tratar de um velho drama!
Quem dera mais jornalistas e gestores públicos usassem ônibus no dia a dia. Sentindo a dura realidade na pele, seria mais fácil propor soluções para a imobilidade.
Se os planejadores e governantes se deslocassem a pé, de bicicleta, ônibus e metrô, certamente não teríamos o pior sistema de transporte do país. Certamente não teríamos governantes que se orgulham de fazer tantos viadutos.
Sinto desilusão quando vou a eventos e encontros sobre mobilidade e percebo que a maioria esmagadora não usa ônibus ou outra forma alternativa ao carro. Os representantes do governo costumam chegar de carro oficial com motorista. Quando o transporte coletivo for pensado para todos – e não para os “pobretões” que ainda não adquiriram o carro próprio – e quando as classes mais favorecidas passarem a usar modos coletivos e saudáveis e começarem a pressionar o governo por melhorias (em vez de pressionar por mais túneis e viadutos), a situação vai começar a mudar.
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É isso aí, Uirá.
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Não tenho carro por opção e uso bicicleta na maioria das vezes, mesmo para distâncias longas. Eventualmente, uso ônibus e fiz recentemente meu Bilhete Único. É uma piada (de mau gosto) o tempo de espera e o desconforto para adquirir o bilhete de integração. Ainda pretendo fazer relato e postar no blog Brasília para Pessoas. Aproveito para compartilhar o Balanço da Imobilidade em 2017, que trata, entre outros assuntos, das deficiências no transporte coletivo e da violência no trânsito.
https://brasiliaparapessoas.wordpress.com/2018/01/15/balanco-da-imobilidade-brasilia-no-rumo-certo/
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Entrei ontem no Brasília para Pessoas. Parabéns pela iniciativa!
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