Privilegia-se a fluidez motorizada em detrimento da segurança, o automóvel em vez dos modos saudáveis de locomoção. Um morador do Lago Norte (bairro de alta renda) que queira ir até o shopping Boulevard, aos supermercados ou a uma clínica no final da Asa Norte, a poucos quilômetros de distância, dificilmente deixará o carro em casa para ir de bicicleta ou ônibus.
Texto e fotos: Uirá Lourenço.
Publicado originalmente no blog Brasília para Pessoas*.
Brasília tem fama de cidade moderna. Mas como aceitar que todo dia as pessoas tenham que se lançar entre carros em alta velocidade e correr para chegar vivas ao outro lado? Como se permite que os ciclistas – que ocupam pouco espaço e não emitem poluentes – disputem espaço com motoristas a mais de 80 km/h?
Essa é a situação no final da Asa Norte, área ‘nobre’ de Brasília. As obras de ‘mobilidade’ avançam, estão quase concluídas. Segundo o Governo do Distrito Federal, trata-se da maior obra de mobilidade na história do DF. No projeto rodoviarista TTN (oficialmente, Trevo de Triagem Norte, mas prefiro chamar de Terrível Trevo Norte) foram construídos inúmeros acessos, túneis e viadutos com foco no automóvel. Pedestres, ciclistas e usuários do transporte coletivo foram esquecidos.
As leis são modernas, tanto as federais, quanto as distritais. A lei distrital n° 3.639 de 2005 estabelece que os projetos viários têm que contemplar ciclovias. Outra lei com mais de 10 anos de existência (lei distrital n° 3.885/2006) também é favorável à mobilidade ativa (não motorizada): entre os objetivos da lei estão “implementar melhorias de infra-estrutura que favoreçam os deslocamentos a pé e em bicicleta” e “estimular a conexão das cidades, por meio de rotas de longa distância seguras para o deslocamento entre as cidades, e para o turismo e o lazer – vias verdes, vias exclusivas para não motorizados”. Leis bonitas no papel, mas a realidade das ruas é bem diferente.
Acompanho a situação no final da Asa Norte há alguns anos. A ponte do Bragueto conecta a área central de Brasília à região norte do DF – incluindo Varjão, Lago Norte, Sobradinho e Planaltina – e sempre foi bem hostil com os desprovidos de carro.
Passar a pé ou de bicicleta pela região é um desafio. E o desafio aumentou, após as obras de ‘mobilidade’ do TTN.
Tenho registrado os riscos no local, antes e depois das obras de ampliação das pistas. Passei lá recentemente para conferir. Decidi ir no domingo (19/1) para aproveitar o Eixão do Lazer e, assim, correr menos risco para chegar ao local. Alguns colegas comentaram que o GDF iniciara a construção de ciclovia na quadra residencial da 216N, próximo à ponte. Veio a dúvida: será que agora vai? Ledo engano! Como de costume, rasgam-se canteiros para construir ciclovias, mas ‘se esquecem’ das conexões nos pontos críticos, com fluxo intenso de motoristas em alta velocidade.
O que dizer de uma ciclovia interrompida por uma mureta metálica ou de concreto?! Pois essa é a situação na ponte do Bragueto. Está lá o fragmento de ciclovia, relativamente larga e sinalizada. Talvez sirva para lazer: alguém chega de carro em uma das extremidades, pega a bicicleta e dá voltas entre uma ponta e outra da ciclovia. Para quem usa a bicicleta como meio de transporte, o sufoco é grande. O caminho termina e obriga pedestres e ciclistas a dividirem a pista com motoristas em alta velocidade. O limite é bem alto (80 km/h), mas muitos motoristas nitidamente passam a mais de 100 km/h.
Uma parte da estrutura metálica (bem ao lado da placa que informa o limite de 80 km/h) já está amassada e com estilhaços de algum carro que acertou violentamente a barreira.
Ou seja, o risco é real! Para quem depende do transporte coletivo não se nota qualquer melhoria. Não existem pontos de ônibus próximos à ponte e não há qualquer faixa exclusiva. O BRT prometido tampouco saiu do papel, mas a tarifa subiu para R$ 5,50!
Em dia de semana a situação fica ainda pior. O excesso de carros em alta velocidade é um desafio a mais no percurso. Passei na 5ª-feira (30/1) de manhã para observar. Não se veem crianças e idosos a pé ou de bicicleta na região. Boa parte dos ciclistas que passam é jovem (do sexo masculino, principalmente), com boa disposição e coragem para encarar o ambiente hostil.
A ausência de crianças e idosos é um indicador claro dos equívocos na mobilidade. Privilegia-se a fluidez motorizada em detrimento da segurança, o automóvel em vez dos modos saudáveis de locomoção. Um morador do Lago Norte (bairro de alta renda) que queira ir até o shopping Boulevard, aos supermercados ou a uma clínica no final da Asa Norte, a poucos quilômetros de distância, dificilmente deixará o carro em casa para ir de bicicleta ou ônibus.
Alto risco na travessia
Não bastasse a ausência de calçadas e ciclovias, outro grave problema é a falta de local seguro de travessia. O movimento de pessoas no final do Eixão é grande, mas não existe qualquer facilidade na travessia de pedestres e ciclistas: semáforo, redutor de velocidade, passarela ou passagem subterrânea.
Próximo da ponte do Bragueto, as pessoas esperam uma brecha entre os carros e saem correndo. Há uma clara questão de gênero associada à insegurança: muitas mulheres trabalham na região, desembarcam do ônibus no Eixinho e precisam atravessar. O limite estabelecido é de 80 km/h, mas nitidamente muitos motoristas passam acima do limite, que já é bem alto. Observei o tempo de espera e conversei com algumas pessoas.
No relato da dona Eleusa, que atravessa o Eixão diariamente, a indignação é bem evidente. Ela diz que espera vários minutos e precisa correr para não ser atropelada. Para melhorar a situação, propõe: “Se os governantes pensassem na população, fariam uma passarela”. Por volta de 7h30, notei que o tempo de espera para conseguir atravessar o Eixão foi superior a 5 minutos. Um ciclista relatou que chega a esperar mais de 10 minutos antes de correr com a bicicleta entre os carros.
Mobilidade Moderna e Qualidade de Vida
Vale lembrar que a tendência atual na mobilidade é incentivar os modos ativos (não motorizados) e coletivos de transporte e desestimular o uso do carro, especialmente na área central da cidade. Mas o que se vê no TTN é justamente o oposto. As cidades modernas, incluindo as capitais europeias, incentivam as pessoas a caminharem e a usarem bicicleta no dia a dia – com infraestrutura de qualidade e limite de velocidade reduzido – e desestimulam o uso do carro com menos pistas e estacionamentos e cobrança pelo uso do espaço (por exemplo, estacionamento pago e pedágio urbano).
Ao investirem em boas calçadas, ciclovias, metrô e linhas de VLT, cidades como Amsterdã, Berlim, Copenhague e Paris têm ganhos nítidos não só em mobilidade, mas em saúde e qualidade de vida.
Uma parcela significativa da população caminha e pedala nos deslocamentos diários. Sem tantas pistas e estacionamentos, sobra espaço para outros usos, como praças e parques.
Certamente, não é por falta de leis nem de recursos financeiros que os pedestres, ciclistas e usuários do transporte coletivo continuam esquecidos. As leis garantem segurança e prioridade aos modos ativos e coletivos de transporte, incluindo o Código de Trânsito Brasileiro e a Política Nacional de Mobilidade Urbana. No entanto, os projetos caros e grandiosos para aumentar a fluidez automotiva – ampliação de vias e construção de túneis e viadutos – têm sido executados por diferentes governos no DF. No pacotão de obras anunciado no mês de janeiro de 2020, destacam-se mais facilidades para os motoristas: túneis, viadutos e alargamentos de pistas.
Para finalizar, deixo algumas questões para refletir:
- Quantos pedestres e ciclistas vão precisar morrer atropelados no final da Asa Norte para as autoridades tomarem providências?
- Como justificar a falta de prioridade na via para os ônibus e a precariedade aos usuários: superlotação, abrigos de ônibus sujos ou inexistentes, ausência de informações sobre linhas e horários?
- Como reverter a lógica rodoviarista de incentivo ao transporte automotivo e cobrar investimentos que resultem em melhorias efetivas na mobilidade e qualidade de vida?
Confira aqui o vídeo Ciclovia no TTN: alto risco para ciclistas gravado em janeiro de 2020
* O blog Brasília para Pessoas reúne dados e imagens sobre o TTN (‘Terrível Trevo Norte’).
Excelente depoimento e análise do combativo Uirá Lourenço. Esse Terrível Trevo Norte é, acima de tudo, a meu ver, uma demonstração do que foi capaz a Terrível Geração Brasília, tão bem representada pelo Terrível Rodrigo Rollemberg. Contraditória e cafona, equivocada e sem o menor talento para a humanização da cidade. Pior ainda, saimos do Rollemberg para cair no pragmatismo ainda mais “chão” e sem expressão de inteligência do Ibaneis Rocha. Brasília cada vez mais Brega.
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Na mosca! Na mosca!
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Por que não colocar trens de passageiros para Valparaíso (GO)?
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Diz isso para CAIADO. Pois o GDF e Governo Federal querem colocar, mas o bonitão do governador de Goiás não quer colocar dinheiro. Aí fica fácil ficar atacando o GDF e GF, e não faz nada pelo povo. Apesar que o projeto do jeito que está é inviável. Deveriam pegar o projeto e implanta-lo no lugar do BRT desde Luziânia até STN. Pronto se resolve o problema, pois o trem irá passar em linha reta, sem desapropriações, sem impactos ambientais, pois o BRT já teve o impacto, e teria pequenas mudanças apenas nas estruturas dos terminais. E lógico, um VLT transporte beeeeeeeeeeeeem mais passageiros do que o BRT.
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Aqui venho defende6isso ha anos
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Eu acho hilário certos comentários de PHDs…. A obra não acabou, a ciclovia vem em segunda fase, e outra, o que PEDESTRES irão transitar num lugar que liga nada e coisa alguma. Igual fizeram uma maravilhosa ciclovia no Park Way para os moradores passearem com os cachorros.
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Eu gostaria muito de ver o plano da ciclovia que vem na segunda fase.
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