Ao impor uma cobrança, sem antes propiciar opções seguras de mobilidade urbana, seja em bicicletas, metrô, ônibus e o tão sonhado VLT, o GDF está criando apenas mais uma espécie de imposto. Porém sem se beneficiar integralmente dessa receita, que ficará nos cofres da empresa escolhida.

 

Por Chico Sant’Anna

O Governo do Distrito Federal pretende implantar um sistema de estacionamento pago, praticamente, em todo o Plano Piloto. A chamada Zona Verde vem com a justificativa de reduzir o fluxo de veículos na cidade, impondo custos pecuniários a quem desejar estacionar perto do trabalho, ou mesmo nas residências, para quem possuir mais de dois carros por unidade residencial. A imposição de despesas para estacionar nos centros urbanos é prática internacional. Há cidades, como Londres, que além de cobrar pelo estacionamento, cobra-se pela entrada do veículo em um determinado perímetro urbano. Na capital britânica, o preço pra dar uma volta no centro é da ordem de R$ 100,00. O mecanismo proposto pelo GDF precisa, contudo, ser bem pensado e dosado, pois os reflexos gerais, em especial para a economia, poderão ser desastrosos.

O transporte de passageiros em ônibus já demonstra esgotamento da capacidade. A migração compulsória de novos passageiros tende a agudizar esse problema.

A adoção de medidas dessa natureza contribui para a redução dos engarrafamentos, da poluição urbana, sonora e, quiçá, dos acidentes de trânsito. O que difere a iniciativa brasiliense das estrangeiras é que a grande maioria dessas cidades já possui eficiente transporte coletivo – metrô, VLT, trem regional e ônibus – e a receita auferida pelas taxas de estacionamento é totalmente revertida para investimentos no próprio transporte público. No caso brasiliense, a parcela revertida para o Estado será da ordem de 10% do arrecadado e não está claro se será revertido para o transporte. Além disso, no exterior, essas cidades são dotadas de serviços complementares de transporte: cessão ou locação de bicicletas, patinetes e até carros elétricos. Aqui, nem a adequação da Rodoviária ao uso de ciclistas, conforme determinou liminarmente a Justiça, foi implementada pelo GDF.

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Brasília já perdeu suas bicicletas e patinetes de aluguel e não se tem notícia de retorno delas. O metrô transporta uma parcela de 120 mil passageiros/dia, longe de atender às necessidades de uma metrópole de três milhões de habitantes. A grande maioria dos usuários de transporte coletivo só conta mesmo com o serviço de ônibus, sempre lotado e desconfortável. O Edital da licitação para escolher uma empresa a gerir os estacionamentos pagos não determina, nem mesmo, que a escolhida seja obrigada a instalar bicicletários seguros, criar ciclovias, ou mesmo implantar bicicletas de locação.

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Criar mecanismos para frear a escalada automotora se faz necessário. Até junho, o Detran-DF acusava 1.863.351 veículos registrados no DF – frota que cresce anualmente a uma velocidade entre 3% e 4%. Em 2014, Brasília registrou a curiosa marca de possuir mais carros do que motoristas habilitados. E ainda há de computar as dezenas de milhares de veículos do Entorno que por aqui circulam. Em 2017, a lentidão do trânsito reteve os motoristas candangos por 97 horas além do necessário. É como se o brasiliense tivesse ficado quatro dias preso dentro de seu veículo. A Capital Federal entupiu suas artérias e hoje é a décima cidade sul-americana mais engarrafada, segundo a empresa de gestão de GPS TomTom, que monitora o fluxo de trânsito no mundo inteiro.

Experiências passadas

É necessário dar um freio nisso. Assim sendo, à primeira vista, a iniciativa do GDF parece ser salutar no sentido de reduzir a quantidade de veículos em circulação. Mas isso, não necessariamente, irá ocorrer, se não for precedido e acompanhado de outras medidas. E o que é pior, a solução posta pode trazer transtornos ainda maiores. O GDF deveria olhar as próprias experiências passadas para não repetir os erros.

Entre 1969 e 1974, o então prefeito do DF, Coronel Hélio Prates da Silveira, implementou uma drástica mudança na W.3 Sul, então principal artéria da cidade. Os estacionamentos centrais foram extintos, taxis proibidos de pegar e deixar passageiros ao longo da avenida. A justificativa oficial era controlar o trânsito na via, mas muitos atribuíram a decisão à inauguração da primeira Etapa do Conjunto Nacional, que não atraia lojistas locais. Com maiores restrições à mobilidade dos clientes, lojas deixariam a W.3 e algumas se instalariam no centro comercial. Tempos depois, no governo de outro coronel, Aimé Lamaison, foi implementada a cobrança de estacionamento no Setor Comercial Sul e em outras áreas centrais. A cobrança era feita diretamente pela Secretaria de Serviços Sociais e a receita destinada as obras sociais. Tanto em um caso, quanto no outro, não houve redução do fluxo de veículos, até porque não foi ofertada à população uma alternativa confiável e confortável de transporte público. Como efeito colateral, contudo, as duas medidas trouxeram sérios impactos no comércio e na deterioração da W.3 Sul e no Setor Comercial, que perduram até hoje. Lojas fecharam, algumas faliram. Restaurantes que davam vida às duas localidades deixaram de existir e a degradação se instalou. Quanto ao trânsito…, continuou da mesma forma.

Em áreas centrais de Brasília, estacionar irregularmente sobre gramados é uma prática cotidiana sem qualquer repreensão das autoridades. Foto de Chico Sant’Anna.

As áreas centrais do Plano Piloto p

O mesmo acontece em passeios públicos. Sem se preocupar com a deterioração das calçadas e com os pedestres, veículos estacionam sem sem ser importunados pela fiscalização. Foto Uirá Lourenço.

arecem conseguir burlar as leis da física que vedam a ocupação do mesmo espaço por dois corpos, no caso, dois carros, ao mesmo tempo. Não se vê, contudo, nenhuma iniciativa dos órgãos públicos para coibir os excessos. Carros estacionados sobre gramados, passeio público, ciclovias, em vagas destinadas a veículos de segurança, retornos, filas duplas, ou mesmo largados à sorte, com a chave entregue aos flanelinhas são uma constante. Uma ação séria e eficaz de fiscalização e penalização dessas situações certamente reduziria a circulação nas áreas centrais e ainda renderia um novo comportamento social. Como aconteceu com a lei das faixas de pedestres. Na hora em que o bolso doeu, os motoristas passaram a respeitar a travessia do pedestre. O GDF economizaria ainda em obras de reparo dos locais danificados e pedestres teriam mais conforto e segurança para se locomoverem. Associado à fiscalização, um estacionamento remoto poderia ser implantado no Parque da Cidade dotado de transporte circular. Ganhariam todos, inclusive a TCB, caso a linha fosse a ela concedida. Outra opção é acabar com o IPVA zero para carros novos no primeiro ano de licenciamento. Não há porque manter esse incentivo.

A proposta prevê também a taxação de áreas residenciais. Cada domicilio terá direito a uma vaga gratuita. o excedente será cobrado. Foto de Sylvia Yano

Residências

O GDF contudo não pensa em alternativas. Quer simplesmente cobrar. Não oferece opções de locomoção. Nenhum novo ônibus ou novo trem do metrô será colocado em circulação para atender novos passageiros. E o pior é que a fatia do leão da receita ficará no bolso da empresa gestora dos estacionamentos por 30 anos. E isso, quase sem nenhuma despesa de investimento imediato em melhorias urbanas. Há ainda o risco que motoristas comecem a dar jeitinhos criando áreas marginais de estacionamento, para fugir às taxas, danificando o patrimônio público. Isso já aconteceu no passado.

O agravante da atual proposta é a penalização das áreas residenciais. Cada casa ou apartamento terá direito a uma vaga sem ônus. As demais serão cobradas. Ou seja, o contribuinte pagará se deixar o veículo em casa ou se for para o trabalho com ele. Não terá alternativas. Um morador do Sudoeste, por exemplo, vai ter que escolher entre ir de carro ao trabalho e pagar R$ 5,00 por hora, em áreas como como o Setor Comercial, e deixar seu carro em casa e mesmo assim pagar R$ 2,00 por hora mais a passagem ida e volta de ônibus. Se antes tiver que deixar filho na escola ou cônjuge em outro endereço, certamente, por questão de custo e agilidade não compensará. Detalhe: se deixar o carro em casa, terá ainda que voltar a cada duas horas para retirar o veículo e parar em outra vaga. Não parece muito racional.

Impactos socioeconômicos

Ao impor uma cobrança, sem antes propiciar opções seguras de mobilidade urbana, seja em bicicletas, metrô, ônibus e o tão sonhado VLT, o GDF está criando apenas mais uma espécie de imposto. Porém sem se beneficiar integralmente dessa receita, que ficará nas mãos da empresa escolhida.

Por outro lado, poderá ter baques em sua própria receita fiscal. Seja na arrecadação de IPVA ou mesmo do ICMS sobre combustível e venda de novos veículos. Recursos que são utilizados em Saúde, Educação, dentre outros serviços para a população. Também poderá ter impactos na arrecadação de ISS e ICMS de empresas de comércio e serviços. Já combalido pela Pandemia, o empresariado pode não aguentar a queda de receita provocada pelo distanciamento dos clientes. Esse é um fenômeno fácil de se verificar no Aeroporto de Brasília. Salas de Cinema e outros comércios voltados ao público externo simplesmente não prosperaram, pois o cliente não quer pagar para estacionar. Com queda na clientela, poderemos ter o abandono de áreas comerciais do Plano Piloto, ampliando a sua degradação – como nos exemplos citados que ocorreram no passado – e, o que é pior: aumento no desemprego. Para a combalida W.3 Sul, poderá ser a pá de cal sobre o que ainda resiste.

No final das contas, tudo isso pode vir a pesar no bolso do GDF e, por consequência, na população. Já com o caixa debilitado pelo Coronavírus, estará ele pronto para enfrentar baixas permanentes de arrecadação? Terá o GDF feito todos esses cálculos? E se o fez: está pronto para as consequências? Nenhuma simulação nesse sentido foi apresentada à sociedade.