
“Chegou alguém pra cobrar propina, desce a porrada no cara. Desce o cacete. Quero ver continuar a fazer isso” – diz a deputada no vídeo. E continua: “a pessoa pode ser inocentada na Justiça. Podem até passar o pano pra ele na polícia, se ele tiver esquema, se ele tiver contato político. Mas desce o cacete nele, igual fizeram lá, com o chefe de gabinete do Gama” – recomenda a parlamentar do Novo.
Por Chico Sant’Anna
Em um vídeo que circula nas redes sociais a deputada distrital Julia Lucy (Novo) parece ter perdido a noção do cargo que ocupa. No lugar de recomendar a quem o assiste denunciar às autoridades competentes quem pratica ato de corrupção, quem cobra propina, ela incentiva populares a espancar servidores públicos pegos nessa condição. A parlamentar ainda levanta suspeição sobre as autoridades e organismos responsáveis pela apuração de supostos casos de desvio de conduta do servidor público.
Ao blog, a parlamentar explicou que as pessoas não podem mais abaixar a cabeça e precisam se defender.
“Cobrança de propina, ameaça aos pequenos comerciantes e empreendedores, criação de dificuldades para vender facilidades são técnicas há muito tempo utilizadas no Brasil e que somente colocam as pessoas em uma situação de medo e impotência, pois são os pequenos que mais sofrem e não sabem a quem recorrer. Por isso, as pessoas não podem mais abaixar a cabeça e precisam se defender de qualquer tipo de situação de roubo ou exploração” – disse nos ela.
A postura da parlamentar, contudo, pode ser vista como um incentivo à barbárie e faz lembrar a aplicação do código babilônico de Hamurabi, datado de 1.770 a.C. Por ele, há quase quatro mil anos, rezava o princípio da lei de retaliação, do olho por olho, dente por dente. É de se perguntar o que ela espera construir socialmente com essa sugestão.
Código Penal
O conteúdo do vídeo despertou indignação, principalmente, entre advogados e juristas.
“Esse vídeo estarrece porque é sim incitação à prática de crime previsto no artigo 286 do Código Penal e quem vier seguir a provocação da parlamentar, pode cometer o crime de exercício arbitrário das próprias razões, disposto no artigo 345, também do CP, além de eventual processo por lesão corporal e outros” – explica a advogada Vera Santana, integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia-ABJD.
“Ao incitar a violência, a deputada extrapola os limites da imunidade parlamentar e comete crime. A extrema direita acha que não precisa obedecer à lei e que pode tripudiar do Estado Democrático de Direito. É dever de todos os cidadãos exigir que as instituições funcionem para defender a democracia. De outro modo, não teremos mais instituições” – afirma o advogado e auditor federal, Marivaldo de Castro Pereira.
O vídeo que circula nas redes sociais não está completo, talvez para facilitar a visualização no celular, mas no trecho compartilhado, de 1 minuto e 29 segundos de duração, Julia Lucy faz menção a um episódio no Gama, onde um servidor da administração regional foi espancado por dois homens e, segundo disse, ela teria informações de que a agressão “tem a ver com cobrança de propina”.
Confira aqui o vídeo em que a deputada Julia Lucy recomenda descer o cacete em que pede propina
Conforme noticiou o portal Metrópoles, o chefe de gabinete da Administração Regional do Gama, Cleider Paiva, foi agredido com uma série de socos desferidos por dois homens ainda não identificados. As agressões ocorreram na terça-feira (27/4), em uma lanchonete da Quadra 13 da cidade. O caso já está sob investigação da 14ª Delegacia de Polícia (Gama Centro).
“Chegou alguém pra cobrar propina, desce a porrada no cara. Desce o cacete. Quero ver continuar a fazer isso” – diz a deputada no vídeo. E continua: “a pessoa pode ser inocentada na Justiça. Podem até passar o pano pra ele na polícia, se ele tiver esquema, se ele tiver contato político. Mas desce o cacete nele, igual fizeram lá, com o chefe de gabinete do Gama” – recomenda a parlamentar do Novo.
Distrital Daniel Donizet (PL), tido como “padrinho” da administração do Gama, achou “lamentável” as declarações de Julia Lucy, rechaçou as acusações da sua colega de CLDF para com o chefe de gabiente da administração regional do Gama. Segundo ele, as acusações da parlamentar do Novo não tem qualquer fundamento e que ela acusa sem qualquer tipo de prova.
“A violência nunca será o caminho. Incitar o comportamento criminoso não é correto. Temos órgãos competentes como o Polícia Civil e Ministério Público para apurar qualquer suposto fato” – comenta ele sobre a orientação da parlamentar em agredir servidores públicos supostamente pedindo propina..
Mito
Para o advogado Aldemário Araújo Castro, ex-controlador-geral do governo do Distrito Federal, estabeleceu-se em Brasília e no Brasil um mito de que na administração pública não se pune o mal feito. “As estatísticas da Controladoria Geral da União – CGU demonstram o contrário. Todos os anos, centenas de pessoas são demitidas. Basta olha pra seção 2 do Diário Oficial. Dizer que não há punição não condiz com a realidade” – argumenta.
“Num momento em que a pandemia mata, desemprega e fragiliza as pessoas, soa ainda mais grave que uma parlamentar incite atos de violência” – analisa Vera Santana. A violência é inadequada. Incitar o comportamento criminoso está errado. A pessoa pode até dar voz de prisão, mas não baixar o sarrafo, pois poderá ser processada por crime de lesão corporal explicam juristas ouvidos pelo blog.
“Sentido conotativo, figurado e metafórico”
Procurada pelo blog, a deputada Julia Lucy (Novo) explicou que “não podemos ser coniventes com nenhum tipo de situação de corrupção. O DF já sangrou muito por isso e recebo diariamente no meu gabinete uma série de denúncias que são devidamente investigadas e levadas adiante.”
O dicionário on-line da Língua Portuguesa aponta a expressão “meter-o-pau” como sendo sinônimo de “espancar e surrar”. Já o dicionário Caldas Aulete ensina que a expressão “descer o cacete” significa “agredir fisicamente, surrar, espancar” ou ainda “espancar com cacete ou cassetete.” Em relação à “porrada”, diz a mesma obra que significa “pancada, soco ou tapa violentos”.
Ao blog, a distrital Julia Lucy deu uma interpretação diferenciada para suas palavras. Segundo ela, expressões como “meter o pau”, “colocar a boca no trombone” ou “descer o cacete” “têm um sentido conotativo, figurado e metafórico”.
“Meter o pau é denunciar algo que não está certo, gritar ou revelar algo que se saiba para todo mundo. Pode-se dizer também que quem põe a boca no trombone é uma pessoa que não quer guardar segredo” – argumenta ela. Vale lembrar que no vídeo compartilhado ao qual o blog teve acesso não aparece a expressão “colocar a boca no trombone”.
Continuando em sua argumentação, a parlamentar inova nos significados contidos nos principais dicionários da Língua Portuguesa
“Descer o cacete é não aceitar, é denunciar, é gritar aos quatro cantos e não ser conivente nem participar do ato que gera malversação do dinheiro público e todas as consequências da corrupção que é o câncer do Brasil e do mundo.”
Assim mesmo, acredita o advogado Marivaldo de Castro Pereira que a deputada cometeu um erro equivalente ao cometido pelo deputado federal, Daniel Silveira (PSL-RJ), ora réu no Supremo Tribunal Federal por suposto cometimento de crime de incitar pelas redes sociais o emprego de violência, dentre outras acusações.
Ele também entende que a deputada infringiu o artigo 286 do Código Penal e por expor a mensagem de forma permanente nas redes sociais, ela comete conduta semelhante à do deputado federal Daniel Silveira, que foi preso em flagrante por ordem do STF.
Diz o Código Penal em seu artigo 286 que é crime incitar, publicamente, a prática de crime. E a pena vai é a detenção por período de três a seis meses, ou o pagamento de multa. Em tese, ela também poderia ser alvo de processo por decoro parlamentar, assim como aconteceu com Daniel Silveira, na Câmara Federal. Procurador por esse blog, o corregedor da Câmara Legislativa, deputado sargento Hermeto, disse que não conhecia o vídeo e iria analisá-lo.
Presidente da Comissão de Disreitos Humanos da Câmara Legislativa, Fábio Flélix (Psol), lamentou as palavras da distrital. “O víídeo e lamentável, ele incita a violência previa, recomenda o justiçamento, quem tem que fazer a justiça é a própria Justiça. E órgãos como o Ministério Público e a polícia estão ai para apurar os fatos dentro das regras constitucionais. Os parlamentares têm que ficar atentos à legislacao e à Constituição” – disse ele.