
Poema de Paulo José Cunha. Foto de Chico Sant’Anna
(para Elisa Lucinda)
Sim, somos poetas.
Logo, somos ridículos,
vergonhosamente ridículos
como os amantes.
Sim, somos poetas.
E poucos sabem
que comemos,
vestimos,
calçamos sapatos.
Como não sabem,
não nos pagam nada,
ou pagam um grão
como se a profissão do verso
não merecesse remuneração.
“Pra que poeta quer dinheiro?
Pra gastar com besteira,
cachaça, maconha, folia?”
Por causa disso,
Vivemos de brisa,
de um gole oferecido,
de um cigarro emprestado,
e de poesia.
Sim, somos poetas,
Profetas da utopia.
E somos de todos os naipes:
Obsessivos, depressivos, suicidas.
Românticos, céticos, crentes,
úmidos de paixão, secos de tesão.
Descrentes, trágicos, etéreos,
concretos, neo-concretos, delicados.
Brutos, sensuais, desesperados,
simbolistas, impressionistas,
comunistas, vigaristas,
ou vates consagrados.
Amargos e acres, salgados e doces,
somos simultaneamente,
o fruto e a semente.
Há os que rimam,
e os que remam
contra a corrente
Outros não aguentam o tranco,
e recusam a vida,
num trago de gás,
ou gole de formicida,
num salto solto no espaço.
Retesam além do limite
a corda do arco
e pulam fora do barco.
Há os que riem e os que choram.
Há poetas de ocasião,
E os poetas oficiais,
que em vez de viver de brisa,
vivem de brasão.
E há também os marginais,
os que adoram a contramão.
Comportados ou doidos varridos,
Esfomeados ou bem nutridos,
Lúcidos ou drogados,
alcoólicos anônimos
ou bêbados conhecidos,
somos estranhos
e botamos tudo na conta da poesia:
alguns de nós
– coisa mais louca –
nem tomamos banho
outros de nós
estamos na academia!
Poetas somos,
profetas da utopia.
Sem saber por quê,
dizem que somos necessários,
então, que diabo, por que não gostam
de pagar nossos salários?
Pior é que quando nos pagam,
trocamos o restaurante pelo bar.
Com esse nosso jeito esquisito,
meio gente, meio bicho
bebemos e fumamos o salário,
depois jantamos… o lixo.
Não espalhem,
(senão vai faltar
para o do fumo ou o da sangria)
mas o principal pagamento do poeta
é mesmo a sua poesia.
Poetas somos,
Profetas da utopia.
Somos ingênuos, sonhadores,
desimportantes.
Dizem que não servimos pra nada
e sem nós, a vida seria mais correta
e o mundo, enfim,
em vez de curvas,
seguiria mais feliz,
em linha reta.
Dizem que moramos na região dos sonhos
logo, somos inofensivos.
Mas ao primeiro sinal
de ameaça à ordem institucional,
vem a contraordem abjeta:
– Prendam todos, todos!
E comecem pelos poetas.
Mas não adianta,
é um mistério profundo:
quanto mais morrem poetas
mais poetas nascem no mundo.
Mal eles quebram um ovo,
surgem dez ovos no ninho.
E gostamos de provocar
o bom senso e o bom-mocismo:
nem percebemos a cauda do pavão
mas rimos do cu do passarinho.
E seguimos assim,
de mortalha ou parangolé
no fio da navalha,
verso na mão, samba no pé,
levando a vida levemente,
entre a ilusão canalha e comovida
e a dor mais doida (e mais doída),
azedamos o chope dos contentes.
Vocês não vêm, mas asseguro
que no fundo do abismo há uma flor
que não é rosa, nem cravo, dália ou lírio
uma flor que só os poetas vêm
porque têm olhos plenos de delírio.
Num porre de poesia,
oscilamos, perigosamente,
entre a melancolia mais demente
e a mais avassaladora alegria.
Poetas somos,
Profetas da utopia
Tenho um poema parecido, escrito e publicado em 1993, durante a guerra civil na antiga Iugoslávia. O título do poema é “Bosko e Admira”. Ele era cristão e ela muçulmana. Eles estavam fugindo por sobre uma ponte e foram metralhados pelas tropas da Sérvia. A moça carregava seus pertences em uma rústica sacola que tinha os seguintes dizeres: CAFÉ DO BRASIL. Ao ler aquela notícia, fiquei tão triste, mas tão triste, que decidi escrever este poema – que foi publicado em uma coletânea no Rio de Janeiro. Recebi muitos elogios na época.
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