Fatos como a morte de Lázaro Barbosa, com 38 tiros que atingiram seu corpo, aliados às ações da PMDF, nas recentes manifestações de indígenas na Capital Federal; da PM de Pernambuco, no protesto anti-Bolsonaro, no qual, em Recife, duas pessoas perderam a visão; da PM paulista, no baile funk da favela em Paraisópolis, em 2019, onde nove jovens morreram em decorrência da ação policial…, todos esses episódios e muitos outros nos obrigam a refletir sobre que polícia queremos.

ATENÇÃO: ESSE TEXTO TRARÁ IMAGENS FORTES DE LÁZARO BARBOSA

Por Chico Sant’Anna

A caçada a Lázaro Barbosa levou 20 dias, envolveu cerca de 270 policiais, majoritariamente Policiais Militares de Goiás e do Distrito Federal, reforçados de integrantes da Polícia Rodoviária Federal e da Força Nacional – esta também composta de policiais militares estaduais – a um custo estimado em R$ 19 milhões. O resultado é o que muitos já imaginavam e que familiares de Lázaro temiam. Lázaro não foi capturado vivo. Levou pelo menos 38 tiros, segundo as autoridades goianas e, pelas imagens, uma pancada no olho esquerdo. Segundo a polícia, Lázaro resistiu à prisão com a ajuda de uma pistola. Dependendo do modelo e calibre da pistola, ele teria, no máximo, de dez à dezesseis balas a disparar. Foi uma saravaida de tiros. Os policiais dispararam 125 vezes, segundo informa o no boletim de ocorrência do caso.

A quantidade de tiros que Lázaro levou levam a questionar os motivos que levaram a polícia a agir dessa maneira e se vivo ele não iria trazer informações importante sobre quem o contratava.

Porque então Lázaro não foi preso vivo? Os policiais que o cercaram não poderiam tê-lo feito gastar toda a munição e, então, prendê-lo com vida? Mesmo sendo necessário atirar contra ele, seriam necessários 38 tiros? Contando apenas os que acertaram o corpo do mateiro. Essa quantidade de tiros mais parece um acerto de contas.

Nas redes sociais já tem muita gente afirmando que “ele teve o que mereceu”. “Para quem agia com crueldade em vida, nada mais junto do que morrer dessa maneira”.

Mas os questionamentos que fizemos acima nos levam a refletir sobre alguns pontos:

O ódio, a vingança, e não a expertise profissional, moveu a ação dos policiais?

Haveria interesse em que Lázaro Barbosa não fosse preso vivo?
Há rumores de que Lázaro estaria plantando o terror naquela área rural de Goiás a mando de empresários ricos interessados em comprar terras com o preço desvalorizado.

Segundo a secretaria de Segurança de Goiás, entre cinco e sete assassinatos teriam sido perpetrados por Lázaro a mando de contratantes. Quem estava contratando Lázaro para matar outras pessoas e por qual motivo?

Lázaro tinha em seu poder quase R$ 5 mil. Quem lhe repassou tamanha quantia em dinheiro vivo?

Com Lázaro morto, vai ser difícil saber a verdade. E assim, mandantes ainda mais violentos poderão ficar impunes. Os mortos não falam.

Expertise policial

Os vinte dias em que se deu a caçada policial à Lazaro Barbosa, pelas matas de Goiás, demonstraram uma estrutura policial, tanto de Goiás, quanto do Distrito Federal, inadequada para a missão, mal treinada para capturar um simples mateiro no Cerrado. Nem com toda a tecnologia empenhada: drones, helicópteros, visão infravermelha, sensores de movimento, cães e tudo mais.

Fatos como esse, aliados às ações da PMDF, nas recentes manifestações de indígenas na Capital Federal; da PM de Pernambuco, no protesto anti-Bolsonaro, no qual duas pessoas perderam a visão, em Recife; da PM paulista, no baile funk da favela em Paraisópolis, em 2019, onde nove jovens morreram em decorrência da ação policial…, todos esses episódios e muitos outros nos obrigam a refletir sobre que polícia queremos.

“Dizem que ela existe
Pra ajudar!
Dizem que ela existe
Pra proteger!
Eu sei que ela pode
Te parar!
Eu sei que ela pode
Te prender!

Polícia!
Para quem precisa
Polícia!”

A reflexão imortalizada na música Polícia, pela banda de rock Titãs, em 1986, é do guitarrista Tony Bellotto. Em 2007, a música foi incluída na trilha sonora do filme Tropa de Elite, que já traz à opinião pública um raio x do que acontece no interior dessas corporações que ganharam musculaturas no regime militar.

Os episódios acima citados, e tantos outros que poderiam ser aqui lembrados, nos obrigam a questionar, em primeiro lugar, a existência de duas corporações policiais, uma militar e outra civil, e, em segundo lugar, o treinamento e mesmo equipamento utilizados pela corporação militar, a quem cabe o policiamento ostensivo. Países com estrutura policial mais avançada optaram por uma única corporação e um elevado nível de profissionalização. Na carreira, o guarda de trânsito, pode virar investigador e até comandante da corporação. Um modelo semelhante ao dos diplomatas, no Itamaraty, e das próprias Forças Armadas. Formações especificas, treinamentos, concursos internos, existe todo um funil que vai peneirando aqueles que podem subir na carreira em função de sua qualidade profissional.

A tropa mais parece equipada para uma guerra no Oriente Médio, do que uma caçada no Cerrado.

Caçada

As imagens da maioria dos policiais militares que se embrenharam pelo Cerrado de Goiás mostraram uma tropa que mais parece equipada para uma guerra no Oriente Médio. Uniforme inadequado para à busca em matas, córregos e grutas, fuzis pesados. E o que é pior, com equipamento de comunicação incapaz de integrar as diversas equipes. Foi necessário que a Policia Federal e até mesmo o Exército emprestassem equipamentos mais potentes para que as diferentes equipes pudessem falar entre si.

É esta mesma parafernália, acrescida de bombas de efeito moral, gás de pimenta, bala de borracha, que vai pras ruas das cidades do Brasil para impedir a livre manifestação de indígenas, de cidadãos desgostosos com os rumos político-sociais do Brasil, e até mesmo da garotada da periferia, como a paulista, que busca nas festas locais uma válvula de escape para a desigualdade social brasileira.

Paramentados com uma parafernália que lembra o filme Robocop, policiais na Capital Federal coibem as manifestações dos povos originários em defesa de suas terras. A foto dos indígenas é de Jacques Philippe Bucher.

Aqui na Capital Federal, já presenciei cargas da cavalaria policial sobre manifestantes, uso de caveirões – que nos tempo da Ditadura Militar eram chamados de brucutu. O nome mudou, mas o uso é o mesmo.

Esses fatos reforçam o que já é avaliação de muitos. Nossa polícia militar é despreparada para enfrentar manifestações sociais. Salvo exceções, parte logo para o confronto. Também é despreparada para encontrar e capturar vivos foragidos nas áreas rurais. Mais ainda, a estrutura policial é incompetente para fazer vingar as centenas, quiçá milhares, de mandados de prisão já expedidos mas que não resultaram em captura de presos. Nem mesmo veículos com IPVA cronicamente atrasados são integralmente retirados das ruas.

Aqui em Brasília, diversos foram os adjetivos para tentar dourar a pílula da Polícia Militar: polícia comunitária, polícia de vizinhança, polícia cidadã…, denominações não faltaram. Entretanto, a truculência contra o cidadão permaneceu uma constante, salvo quando as manifestações sociais coincidiam com as preferências políticas da tropa, como já foi visto várias vezes na Avenida Paulista ou na própria Esplanada dos Ministérios. Se os manifestantes rezam a mesma cartilha da tropa, podem ir com suas bandeiras até a Praça dos Três Poderes, beijar a mão na rampa no Planalto ou soltar fogos contra o STF. Se, contudo, os manifestantes tiverem outra visão, o bloqueio não permitirá chegar ao Congresso Nacional, que outrora contou com um parlatório, erguido a mando do deputado Ulisses Guimarães, para que ali a cidadania se expressasse. Hoje, nem pisar na grama, pode-se mais.

A democracia jamais será real e completa enquanto faltar transparência e houver dúvidas sobre a correção das ações policiais. Enquanto perdurarem duas forças policiais em cada Estado. Enquanto houver uma corporação agindo e pensando como força auxiliar das Forças Armadas. Enquanto não houver uma polícia profissionalizada, eficiente, seja nas áreas urbanas, seja no meio rural. Uma polícia que a técnica prevaleça sobre o rancor.

O país não pode mais conviver com essa brutalidade que vira e mexe resulta em chacinas que assistimos rotineiramente nos telejornais da noite. Chacinas onde inocentes morrem por balas perdidas, que nunca se identifica quem as perdeu. Onde jovens desaparecem ou aparecem mortos e quase nunca os responsáveis são identificados e punidos. Basta comparar a quantidade de pessoas vítimas, fatais ou não, da ação policial com a quantidade de policiais responsabilizados.

O chamado Excludente de Ilicitude a policiais, que o atual governo tenta incluir na legislação, já existe no cotidiano. O Massacre de Carajás, Carandiru, a Chacina da Candelária, os exemplos existem por todo o Brasil.

Parodiando os Titãs, a Polícia que a gente precisam não é essa.
Polícia para quem precisa