Um detalhe que preocupa moradores desses bairros é que o projeto de Ibaneis não exige que a atividade econômica seja desenvolvida por um morador do bairro e em seu local de moradia. Não há nem mesmo limitação da quantidade de profissionais que poderá atuar a partir de um endereço residencial. Ou seja, não é uma iniciativa para se adequar aos modernos conceitos de home-office.

Por Chico Sant’Anna

Moradores do Lago Sul, Norte, Park Way e Taquari voltam a ficar apreensivos com a cobiça do GDF e de alguns parlamentares da Câmara Legislativa sobre o uso e a destinação dos lotes onde moram.

Depois de quase dois anos de muita luta e mobilização contra a iniciativa do governo Rodrigo Rollemberg em permitir que os lotes residenciais nesses bairros tivessem uso comercial e econômico; a administração de Ibaneis Rocha em plena Pandemia retoma a redação de uma nova Lei de Uso e Ocupação do Solo – Luos e, em seus regramentos, abre a porteira para que atividades econômicas possam existir nos lotes residenciais dessas localidades. Desta forma, em termos de perspectiva de como preservar essas regiões administrativas, não se vê muita diferença de concepção entre os governos petista de Agnelo Queiroz, do socialista de Rodrigo Rollemberg e do conservador Ibaneis Rocha. Todos tem olho gordo nos quatro bairros.

A atual Luos data de 2019, sancionada por Ibaneis Rocha, mas foi toda elaborada pelo antecessor, Rodrigo Rollemberg. Dezenas de audiências públicas e debates com as comunidades aconteceram e, ao término, o GDF se rendeu às reivindicações dos moradores que requeriam a permanência de seus lotes como residenciais. A atual Lei nº 948, de janeiro de 2019, classificou os lotes e casas residenciais das regiões administrativas do Lago Sul e Norte – onde está incluído o Taquari – e o Park Way na categoria Unidade de Ocupação do Solo (UOS) Residencial (RE) do tipo 1 e 2. Isso significa, segundo estabelece o artigo 5º, inciso I, alínea a da Luos, que o seu uso será exclusivamente residencial, na categoria habitação unifamiliar.

Flexibilização

Essa regra, ainda na tramitação, foi flexibilizada com a adoção do artigo 6, o qual no seu parágrafo 6º incluiu três exceções. Atendendo à pressão da Ordem dos Advogados do Brasil – seção DF, que acompanhou de perto a votação na Câmara Distrital, foi permitido que nas residências funcionassem escritórios de advocacia. Além deles, a pedido do Itamaraty, a lei ainda permitiu que consulados e embaixadas, bem como escritórios de representação de órgãos internacionais e dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios ali se instalassem.

Outra excepcionalidade prevista no artigo 82 da mesma lei, é a que permitiu a continuidade do funcionamento da atividade econômica previamente existente no mesmo endereço, desde que comprovado seu funcionamento pelo prazo mínimo de dois anos anteriores à data de publicação da lei (janeiro de 2019) e o atingimento de algumas condicionantes, tais como obter anuência dos moradores confrontantes.

Sobre os projetos de natureza urbanísticas do governo Rollemberg, leia também:

Desde janeiro de 2017, entidades representativas de diversos bairros do DF pressionaram o GDF a não adulterar o projeto urbanístico de Lucio Costa e manter os lotes residenciais exclusivamente para moradia.

A LUOS de Ibaneis

Agora a palavra de ordem é flexibilizar ainda mais, aproveitar o isolamento social e fazer aprovar aquilo que não conseguiram no governo passado. Segundo estudo jurídico encomendado pelo, Conselho Comunitário do Lago Sul – CCLS, a nova proposta de Luos inclui novas atividades que podem ser nocivas aos bairros e até o Distrito Federal, como um todo.

Na prática, a proposta do governo Ibaneis ataca de frente o conceito urbanístico criado por Lucio Costa de setorizar cada bairro da cidade. Embora não esteja incluído na área tombada o Lago Sul e Lago Norte constavam do projeto de Lucio Costa. Alé foi designada a instalação dos Setores Habitacionais Individuais Sul e Norte. No caso do Park Way, era, originalmente as Mansões Suburbanas Park Way, que depois passaram a ser denominado de Setor de Mansões Park Way. Contraditoriamente, sob a alegação de imoveis ociosos, Ibaneis quer levar também residências para a área central do Plano Piloto, notadamente no Setor Comercial Sul. Ora, a abertura das três RAs para a instalação de atividades econômicas vai deixar ainda mais ociosa a área central.

Sob o argumento de “corrigir erros na redação” da atual LUOS, o Governador do Distrito Federal, encaminhou para a Câmara Legislativa do Distrito Federal, em dezembro de 2020, o projeto de lei complementar 69/2020, “com extensas alterações em toda a sua redação” – segundo a análise recebida pelo CCLS.

Entre as, alterações, a mais severa dá nova redação ao artigo 6º, ampliando a natureza de atividades econômicas que poderão ser desempenhadas por todo e qualquer profissional autônomo”, desde que respeitadas as seguintes condicionantes:

I – previamente autorizado pelo respectivo condomínio, quando houver;

II – observem as disposições da Lei 4.092, de 30 de janeiro de 2008, que dispõe sobre o controle da poluição sonora e os limites máximos de intensidade da emissão de sons e ruídos resultantes de atividades urbanas e rurais no Distrito Federal;

III – não seja instalada placa de identificação de estabelecimento comercial;

Segundo o estudo jurídico, “a justificativa para esta alteração é que corrigiria a quebra de isonomia contida no dispositivo da lei em vigor, que assegura, tão somente, a instalação de “escritórios de advocacia” em lotes classificados como RE 1 e 2.

Também é invocado que a “nova LUOS” deve estar em consonância com a Lei Federal nº 13.874/2019 e com a Lei Distrital nº 6.725/2020, que versam sobre a declaração de direitos de liberdade econômica.

Autônomos

Engana-se quem pensa que profissional autônomo é sinônimo de profissional liberal. São duas condições distintas que podem até, em algumas situações, coincidir na categorização de uma atividade. É tipo aquele adágio que diz que todo baiano é brasileiro, mas nem todo brasileiro é baiano.

Segundo o Guia Trabalhista, “Trabalho autônomo é toda atividade exercida por profissionais de forma liberal, prestando serviços para empresas ou pessoas por um tempo específico, sem vínculo empregatício.” Ou seja, um consultor econômico, um dentista, um oculista, um engenheiro pode seu um profissional autônomo. Entretanto, um serralheiro, um mecânico de automóveis, um marceneiro, um vendedor, também podem exercer sua atividade na condição de autônomo. O portal Contabilizei divide em duas categorias os profissionais autônomos:

  1.  Prestadores de serviços de profissões não regulamentadas, por exemplo: encanador, digitador, pintor, faxineiro, pedreiro, e outros assemelhados;
  2. Prestadores de serviços de profissões regulamentadas, por exemplo: jornalista, advogado, médico, contabilista, engenheiro, nutricionista, psicólogo e outros registrados nos seus respectivos conselhos regionais de fiscalização profissional.

Em outras palavras, qualquer pessoa interessada em trabalhar sem vínculo empregatício pode fazê-lo na condição de trabalhador autônomo. E o trabalho como autônomo não significa uma trabalho individual. O portal Contabilizei explica que o autônomo tem liberdade de organização e execução do próprio trabalho, podendo contratar e contar com a ajuda de auxiliares e mesmo substitutos.

Um detalhe que preocupa moradores desses bairros é que o projeto de Ibaneis não exige que a atividade econômica seja desenvolvida por um morador do bairro e em seu local de moradia. Não há nem mesmo limitação da quantidade de profissionais que poderá atuar a partir de um endereço residencial. Ou seja, não é uma iniciativa para se adequar aos modernos conceitos de home-office.

“A falta de exigência no PLC de que o empreendedor more na residência, abre a oportunidade de que autônomos (empresários), em conjunto ou individualmente, transformem as casas no Lago Sul e Norte em imóveis puramente comerciais, ferindo de morte uma garantia tão fundamental e importante para os moradores, que é a proteção da habitação unifamiliar” – alerta o estudo jurídico do CCLS.

O documento assinala ainda que o autônomo pode se registrar enquanto pessoa jurídica, obtendo para si um CNPJ o que amplia ainda mais as possibilidade de negócios.

“Para pedir a legalização de sua empresa em uma casa na RE 1, bastará que o empresário tenha sua atividade prevista no Anexo I, que está em constante atualização. O que hoje não é permitido, amanhã poderá sê-lo com uma simples mudança nesse Anexo 1 dependendo apenas do arbítrio da administração pública do GDF.

Já a Prefeitura Comunitária do Lago Norte avalia que a nova lei vai permitir não apenas trabalhos unipessoais, artesanais ou similares, já assimiladas e de convivência harmoniosa, mas também o grande comércio, volumoso, clínicas, casas para eventos, academias, dentre outros.

Sob o aspecto ambiental, a Prefeitura considera que o Lago Paranoá está cada vez mais assoreado, assim como os riachos abastecedores que estão com suas margens desmatadas e ocupadas por construções irregulares, constituindo também depósitos de lixos diversos e desemboque de esgotos. “Algumas nascentes próximas ao lago estão com sua integridade perigosamente comprometidas” – diz a entidade em seu portal na internet. A análise jurídica encomendada pelos moradores do Lago Sul considera que são “inaplicáveis” os argumentos utilizados pelos responsáveis da nova LUOS para ampliar nessa magnitude as opções de desempenho de atividades econômicas em áreas classificadas legalmente como baixa densidade urbana como a UOS RE 1 e RE 2, inseridas em Áreas de Proteção Ambiental – e que deveriam ser exclusivamente residenciais para habitação unifamiliar.

“Os Parques Vivencial I e II, assim como o Parque das Garças são motivo de extrema preocupação, pois o abandono deste último e do Vivencial I é gritante, absurdo e a especulação imobiliária e comercial sempre os tem como foco de exploração, o que significaria mais impermeabilização do solo e diminuição das áreas verdes” – diz a entidade.

Atividades permitidas

O Projeto de Lei, com seus anexos, possui 277 páginas, muitas delas de difícil entendimento para o cidadão comum. Além da permissão para que representações diplomáticas e similares possam se instalar, o Anexo I lista onze campos de atividades econômica liberadas para as localidades do Distrito Federal classificadas como Residencial Exclusivo 1 e 2 – que são exatamente os bairros dos Lagos Sul e Norte, o Park Way e o Taquari. As atividades listadas até agora são:

  • Atividades auxiliares dos seguros, da previdência complementar e dos planos de saúde
  • Atividades de contabilidade, consultoria e auditoria contábil e tributária
  • Atividades fotográficas e similares
  • Atividades imobiliárias por contrato ou comissão
  • Atividades jurídicas
  • Atividades profissionais, científicas e técnicas não especificadas anteriormente
  • Design e decoração de interiores
  • Pesquisa e desenvolvimento experimental em ciências sociais e humanas
  • Pesquisas de mercado e de opinião pública
  • Publicidade
  • Serviços de arquitetura e engenharia e atividades técnicas relacionadas

Novas atividades

Por emenda do deputado Cláudio Abrantes (PDT), que foi relator da nova Luos na Comissão de Assuntos Fundiários, essa lista poderá ser atualizada periodicamente, bastando para isso que o Conselho de Planejamento Territorial e Urbano do Distrito Federal (Conplan), órgão cujos membros representam em sua maioria diversas áreas do GDF e do empresariado, aprove a inclusão de novas atividades econômicas permitidas. A periodicidade seria definida pelo IBGE. Toda vez que ele vier a modificar a tabela da Classificação Nacional de Atividades Econômicas – CNAE.

Apreensões

O argumento governamental é que a nova Luos vai desburocratizar a licença de funcionamento de novas atividades econômicas, deixando essa responsabilidade a atos unilaterais dos órgãos administrativos do Distrito Federal e do Governador.

O estudo encomendado pelo Conselho Comunitário do Lago Sul ressalta que essas autorizações de funcionamento não estarão condicionadas a outras avaliações de impacto, as chamadas externalidades. “Ignoram questões importantes como disponibilidades de estacionamento, fluxo de veículos e de pessoas e o impacto à segurança e ao meio ambiente” – diz o documento.

Não há qualquer impedimento a que atividades consideradas perigosas e que apresentem alto nível de perigo à integridade física de pessoas, ao meio ambiente ou ao patrimônio possam vir a ser aprovadas no futuro como, por exemplo, serviços de radiologia, quimioterapia e radioterapia, bastando, para isso, que um simples regulamento do GDF contemple essa permissão, conforme prevê o artigo 6º, § 3º, do PLC 69/2020.

Lotes originalmente concebidos para serem residenciais no Park Way estão sendo transformados em local de atividade econômica, tais como lava-jato industrial;

Park Way

Vale ressaltar que no caso do Park Way a situação ainda é mais delicada, pois não há captação e tratamento de esgoto no bairro. Não há coleta seletiva de lixo. Os caminhões a serviço do SLU não passam cotidianamente. Em muitas quadras, a rede de energia elétrica ainda é padrão rural, não comportando grandes demandas de energia concentrada e a rede de Internet tem baixíssima potência. Por outro lado, o bairro está inserido na APA Gama Cabeça do Veado, responsável por aportar ao Lago Paranoá, um terço de suas águas e ainda é área de reintrodução de animais silvestres apreendidos pelos órgãos ambientais.

Pelos motivos acima, ao longo do governo de Rodrigo Rollemberg, entidades comunitárias como a AMAC – Park Way e o Conseg Park Way se posicionaram contra a abertura das residências a atividades econômicas. Apesar de terem tido êxito na redação final da lei, a realidade do cotidiano se mostra em desconformidade. Sem qualquer fiscalização do Poder Público, lotes residenciais se transformaram em estacionamentos comerciais, em garagem e lava-jatos de ônibus, dentre outras irregularidades.

Empresários pedem pressa

A Prefeitura Comunitária do Lago Norte avalia que a aprovação dessa nova Luos vai trazer “consequências danosas à qualidade de vida dos moradores: aumento da densidade populacional, trânsito excessivo que as vias não comportam, poluição sonora e do ar.”

A nova Luos vem tramitando rapidamente na CLDF e as entidades de moradores mais diretamente afetados, residentes nos quatro bairros, não foram consultadas. O projeto já passou pelas Comissões de Desenvolvimento Econômico Sustentável, Ciência, Tecnologia, Meio Ambiente e Turismo, onde o relatório da distrital Júlia Lucy (Novo) já foi aprovado; na de Assuntos Fundiários, na qual aprovaram o parecer do deputado Cláudio Abrantes já foi aprovado; e agora aguarda parecer da Comissão de Constituição e Justiça, onde a relatora é a deputada Jaqueline Silva (PTB), para que então siga para votação no plenário.

Enquanto muitos moradores dessas Regiões Administrativas nem estão informados sobre essas mudanças, empresários da Capital Federal pressionam deputados distritais para que aprovem logo o projeto. A Federação do Comércio do DF (Fecomércio-DF) é uma das entidades patronais que pedem urgência na votação dos deputados distritais na Câmara Legislativa do DF.

“A pauta é uma das prioridades defendidas pela Fecomércio para destravar o setor produtivo” segundo informou a jornalista Samanta Sallum, do Correio Braziliense. A expectativa é que a matéria seja votada ainda este ano, pois o temor é que o calendário eleitoral de 2022 diminua a insensibilidade de alguns distritais, temerosos de perder votos nas urnas.