
Hoje, na medida em que a quantidade de automóveis cresceu desmesuradamente, fazendo do Plano Piloto um espaço assemelhado a um imenso estacionamento, o otimismo desvaneceu. O crescimento da cidade trouxe problemas que implicam na necessidade de repensar e adequar o paradigma urbanístico que orientou sua criação.
Por Geraldo Nogueira Batista*
É do conhecimento geral que o projeto do Plano Piloto de Brasília, do arquiteto Lucio Costa, foi concebido na década de sessenta segundo princípios do urbanismo modernista. Na época, o modernismo era o paradigma, a referência obrigatória para o enfrentamento de questões relativas ao urbanismo das cidades.
Seu autor acreditava no pressuposto de que seria possível “domesticar” o automóvel, que seu uso não seria agressivo nem resultaria em maiores danos à população. A aceitação desse conceito e sua incorporação aos preceitos urbanísticos da cidade eram validadas, mas também confrontada com o fato de que ninguém avaliava quais seriam os impactos decorrentes da implantação da indústria automobilística. Esta dava seus primeiros passos no bojo de um processo de desenvolvimento nacional que alimentava esperanças de prosperidade.
Hoje, na medida em que a quantidade de automóveis cresceu desmesuradamente, fazendo do Plano Piloto um espaço assemelhado a um imenso estacionamento, o otimismo desvaneceu. O crescimento da cidade trouxe problemas que implicam na necessidade de repensar e adequar o paradigma urbanístico que orientou sua criação. Essa revisão pode e deve ser feita sem prejuízo dos valores associados ao seu tombamento como patrimônio cultural nacional e internacional.
Automóveis, automóveis e mais automóveis…
O rodoviarismo tem sido uma das marcas registradas de Brasília. Hoje, urge repensar e revisar o caráter rodoviário que levou a uma priorização da circulação dos automóveis com prejuízo de outras demandas e interesses. O atendimento prioritário da fluidez ao trânsito automobilístico, em detrimento de outras formas de mobilidade, deve ser questionado. Obras viárias, como acréscimos de novas faixas em estradas já existentes, construção de viadutos e vias expressas são as respostas que, até o momento, têm sido adotadas pela administração pública no Distrito Federal. Um exemplo recente é o da alardeada e celebrada conclusão do trevo viário norte. Vozes lúcidas e críticas batizaram-no de “Terrível Trevo Norte/TNT”. Já se anuncia também a construção de um novo trevo na Estrada Parque Indústrias Gráficas/EPIG, para acesso ao Setor Sudoeste. Para construir o trevo, centenas de arvores serão cortadas e uma parcela do Parque da cidade será subtraída em sacrifício à fluidez da circulação dos automóveis. Há que se dizer que rodovias de seis a dez faixas de rolamento isolam e segregam áreas do território impedindo a circulação de pessoas e animais. São obras, entre muitas outras, realizadas na perspectiva do atendimento prioritário das demandas do fluxo de veículos motorizados. Elas evidenciam o descaso com o transporte público e com um efetivo compromisso com o conforto e segurança de pedestres, ciclistas e de todos que enfrentam dificuldades de locomoção.
Confira aqui a coluna sobre Mobilidade em Brasília, veiculada na TV Comunitária do DF
A priorização das obras rodoviárias está associada a múltiplos interesses empresariais e deriva de um forte enraizamento da cultura do automóvel na sociedade. As dificuldades e obstáculos para a superação dessa cultura são inúmeras e não devem ser, de modo algum, subestimadas. Toda mudança que amplie direitos sociais provoca reações de quem se beneficia das restrições dos mesmos. A despeito disso há razões e sintomas de que esses obstáculos não são insuperáveis. Não há como negar que um número crescente de cidades, em todo o mundo, está assumindo programas e projetos baseados em outras premissas. Assumem propostas que valorizam o transporte público, modos alternativos de circulação, impõem restrições ao uso do automóvel em áreas centrais e usam diversas técnicas de intervenção na geometria das vias.
Outra sinalização é evidenciada pela crise ambiental que, embora complexa e variada, inclui entre suas causas fatores urbanos. Uma crise que levanta a necessidade de descarbonizar atividades. Não há como descartar o fato de que nas cidades a circulação de veículos motorizados dá uma significativa contribuição para o agravamento da crise. Esses veículos são fontes de emissão de poluentes que contaminam a atmosfera, o solo e o meio hídrico das cidades. Outro efeito do seu uso é a poluição acústica no meio urbano. Também contribuem, em escala local, para a formação de ilhas de calor nas cidades e, de modo mais amplo, para o aquecimento global do planeta.
Há a expectativa de que essas questões serão amenizadas ou equacionadas a médio e longo prazo, através da adoção generalizada da eletro-mobilidade[1]. Seja pelo uso de novas tecnologias – como a dos eletro-combustíveis – que poderão proporcionar uma sobrevida aos motores de combustão interna[2], seja pela eliminação desses e do consequente uso da gasolina e do diesel ou ainda pelo uso combinado dessas várias possibilidades. Uma revolução tecnológica que atenuará impactos ambientais e danos à saúde provocados pelo uso dos carros. Os nossos pulmões e também nossos ouvidos, sem dúvida, agradecerão. Um avanço que, embora contribua, não levará a uma solução de todos os problemas da automobilidade e da relação -conflituosa entre a cidade e os veículos motorizados. Outra questão, sobre a qual ainda não se tem muita clareza, é a dos veículos autodirigidos, sem a intervenção de motoristas. Permanece a incógnita sobre quais serão os impactos que esses terão sobre as cidades.
A invenção e adoção do automóvel como um modo preferencial de locomoção urbana alterou de modo significativo a percepção e significado das vias das cidades. Espaços que serviam à vários objetivos passaram a ser entendidos como sendo destinados à circulação de veículos motorizados. Em consequência dessa transformação, as vias passaram a ser espaços de uso prioritário dos automóveis e outros veículos. A predominância do uso das vias urbanas por veículos motorizados se estabeleceu. A sua utilização preferencial por pedestres ou mesmo por veículos não motorizados, de tração humana ou animal, foi abandonada. Automóveis e outros veículos adquiriram uma dominância que só muito recentemente passou a ser revista e contestada.
A crítica à excessiva valorização da circulação dos veículos motorizados não implica em nenhuma radical negação do seu uso. Penso que se trata de relativizar e reposicionar seu papel com a requalificação de outros fatores e valores. As respostas às distorções da cultura rodoviarista são variadas. O texto destaca uma delas, a devolução da predominância do pedestre no uso dos espaço e vias públicas.
Avanços na direção da meta da predominância do pedestre nos espaços públicos de circulação poderão ser obtidos através do uso de técnicas como a moderação de trânsito e dieta viária[3].
O uso dessas técnicas tem como objetivo assegurar uma maior segurança, tanto à circulação de pedestres e bicicletas como dos veículos motorizados. Importante salientar que a redução de limites máximos de velocidade é imprescindível, evita a ocorrência de fatalidades em razão de atropelamentos. A proposta de redução das velocidades máximas, em conjunto com outras medidas de moderação de trânsito, atuará no sentido de mudar o comportamento de condutores dos veículos. Entre outras propostas há o estreitamento das faixas de circulação veicular, a diminuição dos raios das curvas de meios fios nas esquinas e interseções viárias, tabuleiros, chicanas, a elevação das faixas de travessia de pedestre ao nível das calçadas e por demais alterações da geometria viária.
Voltando ao caso de Brasília, um curto e provocativo exercício, a título de mero exemplo, pode ilustrar como se pode caminhar nessa direção. Um exercício que adota medidas e experiências já testadas e aprovadas em várias cidades. Especulo assim como seria um Plano Piloto onde a circulação de pedestres fosse, de fato, uma prioridade. Onde, em situações de conflito, os carros é que estariam invadindo espaços que, por direito, deveriam ser de domínio dos pedestres. Ou seja, o contrário do que é atualmente praticado não só em Brasília, mas também nas demais cidades do país. É uma diferença sutil, mas vital para a apropriação do espaço das cidades pelos que nela vivem.
Uma das medidas assumidas no exercício seria a elevação dos faixas e espaços de travessia de pedestres ao longo das quadras 500 da W3 Sul. Com isso, seria colocado à disposição de todos que por ali venham a circular, um calçadão contínuo, ininterrupto e livre de obstáculos. Seria criado um oásis de circulação segura, acessível e tranquila para pedestres, cadeirantes, deficientes visuais e outros de mobilidade reduzida. Uma inestimável contribuição para a revitalização dessa avenida.
O domínio do pedestre não deveria ser assegurado e restrito à W3. Faixas de travessia pedestre poderiam ser, de forma geral, elevadas ao nível das calçadas em diversas outras situações. Caminhantes e ciclistas poderiam, tranquilamente, cruzar as ruas de comércio local sem se preocupar ou perder tempo com as indicações de sinalização dos semáforos atualmente utilizados. O mesmo aconteceria nas vias W1, W2 e L1.
Diagrama Woonerf
Pode-se também imaginar propostas para as superquadras, no sentido de que também sejam consideradas áreas de domínio, por excelência, do pedestre. Nelas, e em outras situações, a velocidade máxima de circulação dos veículos motorizados não excederia trinta quilômetros por hora. A circulação no espaço interior das quadras poderia ser tratada de modo a possibilitar o seu compartilhamento por pedestres, ciclistas e veículos motorizados, a exemplo dos woonerfs holandeses, propostos e adotados na década de setenta. Um compartilhamento em que o uso peatonal e recreativo do espaço não conflitaria com o seu uso para a circulação de veículos. Uma ideia semelhante, na época ousada e um tanto ou quanto utópica, foi proposta pelo arquiteto Fernando Burmeister, em 1964. Em sua dissertação de mestrado na Faculdade e Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília/FAU-UnB ele fez a proposta para as superquadras da Unidade de Vizinhança São Miguel[4] na Asa Norte. O amadurecimento da proposta foi interrompido pelo desmantelamento da Universidade depois do golpe de 1964. No nosso exercício as faixas de cruzamento de pedestres nas entradas das quadras, que articulam e dão continuidade às calçadas que circundam as quadras, também seriam elevadas. Finalmente, seria alcançada uma real efetivação do ideal, imaginado por Lucio Costa, de domesticação dos automóveis.
Domesticação do automóvel e o fim do pesadelo das soluções rodoviáristas.
[1] Utilização de veículos elétricos ou híbridos, individuais (bicicletas, patinetes, motos, carros etc.) ou coletivos (ônibus, caminhões, trens etc.) para a movimentação de pessoas e cargas
[2] A eletro-mobilidade aliviará algumas questões ambientais, mas provavelmente agravará outras na medida em que implicará na necessidade de maior utilização de minerais como o cobalto, cobre, lítio, neodímio, nióbio e outros necessários para a produção de baterias, imãs e painéis solares.
[3] As técnicas de moderação de trânsito/traffic calming e dieta viária/road diet, foram criadas e desenvolvidas nos Estados Unidos. Incluem intervenções alterações na geometria das vias de circulação e visam atenuar os impactos negativos da circulação de veículos motorizados, como atropelamentos e outros acidentes de trânsito.
4] A Unidade de Vizinhança São Miguel era destinada aos funcionários do Ministério das Relações Exteriores. Por proposta acordada com o Ministro Wladimir Murtinho, seu planejamento urbanístico seria realizado pelo Centro de Planejamento/CEPLAN da UnB, com a participação de alunos do Mestrado da FAU/UnB.
*Arquiteto, urbanista, ex-diretor da FAU/ UnB e professor adjunto. É um apaixonado crítico de Brasília, cidade onde vive desde 1963.