
“O que aconteceu e tem acontecido com os colaboradores da Rádio Cultura FM é um conjunto de grosserias. Falta o mínimo de respeito no trato com quem sempre esteve na emissora construindo seu nome. Nós somos a identidade da Cultura, mas eles não perceberam.”
Por Dioclécio Luz*
A Rádio Cultura FM foi inaugurada em 1988. Naquela época as músicas eram gravadas em long-play, computador não existia. Naquela época ninguém imaginaria que anos depois o país teria um presidente incapaz de falar uma frase inteligente, citado numa CPI como responsável pela morte de 620 mil brasileiros, e que o governador no Distrito Federal seria um aliado dessa figura macabra.
Em 1988 também surgiu o programa Canta Nordeste na Rádio Cultura. A proposta original era tocar a música da região. Depois foi visto que precisava mostrar a região nos seus mais diversos aspectos: social, econômico, político; fauna e flora; alegrias e tristezas. E foi assim até 2021 quando a Secretaria de Cultura e a Rádio Cultura anunciaram seu fim. Em janeiro de 2022 o programa foi expurgado da Rádio Cultura.
O começo de tudo foi uma denúncia feita ao Ministério Público do Tribunal de Contas do DF (TCDF), por um grupo de aprovados no concurso da rádio, questionando a presença de comissionados fazendo o que eles, os selecionados, deveriam estar fazendo. Em 2019 o TCDF abriu o processo, mas desviou-se da rota original: o problema agora não eram os comissionados, mas os voluntários receberem recursos do Fundo de Apoio a Cultura (FAC). O Canta Nordeste, concorreu e por duas vezes foi selecionado, recebendo recursos para manutenção de programas por dois semestres de sua longa história.
O FAC, é importante ressaltar, cobre só uma parte da produção e por um período limitado. O apoio do FAC significou uma ínfima redução nos gastos de produção dos programas por um curto período da história. Ele não paga o que foi investido pelo colaborador em 10, 20 ou 30 anos de programa.
Em 11 de fevereiro de 2020, o plenário do Tribunal de Contas do DF concluiu que a captação de recursos por voluntários era irregular e proferiu a Decisão nº 438, determinando que nos próximos editais do FAC para Radiodifusão a Secretaria de Cultura eliminasse da concorrência os voluntários ou colaboradores da Rádio Cultura. Em abril de 2021, um ano depois de proferida a decisão do TCDF, a secretaria de Cultura lançou o edital FAC Multicultural com a nova regra imposta pelo TCDF. Quando do lançamento do edital, a Rádio Cultura mantinha no ar 12 programas. Desses, 11 eram produzidos e apresentados por nós, colaboradores. O Canta Nordeste, que faço na rádio há 33 anos, e mais recentemente em parceria com Cíntia Magalhães, era um deles.
Entre 2019, quando teve início o processo no TCDF, e 2021, quando foi publicado o edital, haviam se passados 2 anos. E nesse período nenhum colaborador foi informado do que estava acontecendo. Isso mesmo, os principais personagens dessa história, os atingidos pela decisão, não foram alertados sobre o fato de estarem sendo processados. Em nenhum momento o TCDF, a Secretaria de Cultura e Economia Criativa (SECEC) ou a direção da rádio, comunicaram de que havia um processo contra nós, e tampouco o resultado da decisão. Faltou respeito, tratamento digno, sobrou desprezo.
Era missão do TCDF apurar a denúncia de que voluntários estavam, indevidamente, recebendo recursos públicos. Era seu dever cobrar informações à Secretaria de Cultura/Rádio Cultura. Mas, então, o Tribunal cometeu alguns erros. O primeiro foi se dar por satisfeito com as “provas” pífias que recebeu da SECECE. Em segundo, uma vez que se tratava de tema que dizia da atuação de pessoas – seres humanos – nós deveríamos ser ouvidos, e não fomos. Assim, preza o devido processo legal: os acusados têm o direito de se manifestar.
Formalmente a acusada do pagamento irregular era a secretaria de Cultura. Mas, o TCDF no caso, deveria notar que o processo citava nominalmente os produtores dos programas. Eu, produtor e apresentador do programa Canta Nordeste, fui acusado de cometer um crime e não fui informado disso! Por dois anos o Tribunal de Contas tratou dessa acusação e não cuidou de me comunicar. Se não era de sua competência me alertar, que exigisse da SECEC que fizesse isso. Era o mínimo que se esperava de um tribunal, qualquer um: “informem as partes citadas”. Não foi feito.
O TCDF também deveria questionar nas informações prestadas pela SECEC da ausência dos testemunhos dos citados na investigação. Ora, se houve um crime, uma irregularidade, os possíveis autores do crime, nós colaboradores, deveríamos ser chamados a falar nos autos. A SECEC não nos ouviu e o TCDF se satisfez com o vazio dado.
Nem o Tribunal de Contas nem a secretaria de Cultura consideraram o dano moral causado aos colaboradores. Algumas pessoas souberam desse processo e certamente fizeram um juízo de valor negativo da nossa conduta. Corremos o risco desse processo chegar à mídia e até a um desses programas de “jornalismo abutre”. Seríamos julgados e condenados ali. Na verdade seria matéria em qualquer jornal e não somente alimento dos abutres. Afinal, havia a denúncia e haviam os acusados de crime. Por sorte esse jornalista não apareceu. Eu teria dificuldades em lhe explicar o que estava acontecendo. Passaria por mentiroso.
– Como assim, você não sabia que é acusado de, ilegalmente, apropriar-se de recursos públicos?
O processo durou dois anos no Tribunal de Contas e você não está sabendo de nada?
– Não. Não estou sabendo.
A dúvida central no processo era que os colaboradores da rádio poderiam estar usando a condição especial de colaboradores para serem selecionados no FAC. Uma investigação bem feita deveria incluir, necessariamente, as oitivas dos citados, os responsáveis pelo processo na SECEC – não ocorreu. Também seria fundamental investigar como foi a atuação da comissão responsável pela seleção dos projetos – não foi feito. O fato é que o TCDF optou por uma apuração burocrática e superficial: a mera troca de papeis e uma visita à rádio.
No troca-troca de papeis entre a secretaria de Cultura e o TCDF, além de ocultar dos colaboradores o que estava acontecendo, a SECEC ainda cuidou de desqualificar os programas e seus produtores. Fomos apresentados como um grupinho de amadores tentando se profissionalizar. Quanto à promoção da arte e cultura de Brasília, quanto à contribuição que damos à emissora enobrecendo à sua programação, nada. Há três décadas fazendo um programa às minhas custas e a direção não conseguiu manifestar uma palavra em reconhecimento ao trabalho. Para o Secretário de Cultura, Bartolomeu Rodrigues e para o diretor da rádio, Walter Silva, esse meu programa, como os demais produzidos por colaboradores, não valem nada.
Foi com essa imagem do nosso trabalho que o TCDF julgou a questão. E foi um dos motivos, supõe-se, para recusar o nosso pedido de revisão, apresentado em 2021. Alegou que não tínhamos apresentados novos documentos e que estávamos atrasados. Ao que parece, não leram o nosso pedido: lá está escrito que nosso “atraso” se deu porque o TCDF nunca nos informou do que estava acontecendo. E o regimento do próprio TCDF aponta que não houve atraso, afinal o prazo previsto é de 5 anos (art. 168). Parece coisa de Kafka: você descobre de forma atrasada que há um processo, e quando recorre, dizem que você chegou atrasado.
Com a publicação do edital do FAC Multicultural em abril de 2021 vetando a nossa participação, descobrimos que aquilo era resultado de um processo desenvolvido de forma oculta. Imediatamente solicitamos uma audiência com o secretário de Cultura, Bartolomeu Rodrigues, e o diretor da rádio, Walter Silva. Depois de muita insistência, a reunião aconteceu. Mas Bartolomeu não foi. E só então tivemos acesso ao processo: eu e outros onze produtores éramos citados como criminosos e SECEC, sem minha autorização, fazia a “nossa defesa”.
Então, de Kafka o romance descambou para Gabriel Garcia Márquez. Para agradar os colaboradores, ressentidos com o desprezo manifestado pela SECEC/Rádio Cultura, eles inventaram um presente de consolo. Algum “gênio político” instalado na secretaria de Cultura achou por bem criar um “Diploma de amiguinho da rádio”, como forma de comprar a paz com esses rebeldes. É comum em prefeituras atrasadas e no Palácio do Planalto da atualidade, bajular os chatos e agradar os amigos, com a entrega de uma moção, diploma, coisa do tipo, em cerimônia oficial. No caso do GDF, a coisa escolhida seria um “Certificado de agradecimento aos voluntários dos programas da Rádio Cultura FM”. Teve até convite com data marcada, 27 agosto de 2021. Mas aí, alguém lá dentro deve ter percebido o ridículo da proposta, e a cerimônia foi cancelada. Veio a alegação de que o secretário teria outra agenda nesta data. E nunca mais se falou nisso. E o secretário sumiu de vez – nunca quis conversar conosco sobre o assunto.
O que aconteceu e tem acontecido com os colaboradores da Rádio Cultura FM é um conjunto de grosserias. Falta o mínimo de respeito no trato com quem sempre esteve na emissora construindo seu nome. Nós somos a identidade da Cultura, mas eles não perceberam.
Há décadas transito pela rádio, acompanhando todas as mudanças efetuadas, trabalhando para rádio. Há décadas que nós colaboradores somos mais que voluntários. Antes desse diretor aparecer, antes desse secretário assumir, antes de Ibaneis virar governador, antes desse desastre se instalar no GDF e na rádio Cultura, bem antes de haver servidores efetivos na emissora, a gente fazia programas às nossas custas. De graça para o Estado. Verdade seja dita: a gente acreditou mais na Rádio Cultura, a gente investiu mais nela, do que todos esses que hoje se acham donos da emissora; os mesmos que dizem que nós não passamos de voluntários, e que eles é que são a rádio. Por isso o programa Canta Nordeste, depois de 33 anos no ar, caiu fora da Rádio Cultura FM. Outros seis programas saíram na semana passada.
A direção atual não tem a mínima ideia do que era esse programa. Não notou que ele ia além da cena musical regional e tratava de questões históricas, econômicas, sociais, políticas. Ele abordou o fenômeno do cangaço, a história do massacre de Canudos, a Tropicália e o Movimento Armorial, o mangue beat e música indígena. Através do Canta Nordeste ouvinte ficou sabendo que, ao contrário do que diz a Globo, o Nordeste não é uma coisa só: existem sotaques, linguagens, culturas diferenciadas, conforme a região, praia ou sertão. Esse programa tocava na Cultura FM os clássicos e os modernos da música brasileira; denunciou a violência, o racismo, a homofobia; mostrou o que é a caatinga e os ataques que o bioma vem sofrendo pelo agronegócio.
Na sua longa história, o programa fez entrevistas com artistas consagrados como Elomar, Baby Consuelo, Geraldo Azevedo, Fagner, e também com aqueles que estavam iniciando a carreira. Abriu as portas para os artistas de Brasília. Colocou no ar as antigas e as novas vozes femininas.
Apresentado por mim e Cíntia Magalhães, o Canta Nordeste encerra sua história na Rádio Cultura FM, mas não morre. Ele continuará sendo veiculado na Rádio Eixo (via internet) e em três rádio comunitárias: Utopia (Planaltina, DF), Valente (Valente, Bahia) e Noroeste (Campinas, São Paulo).
*Dioclécio Luz é Jornalista e Radialista, Mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília, autor, dentre outros títulos, de A arte de pensar e fazer Rádios Comunitárias e Rádios Comunitárias - na Intenção de Mudar o Mundo. Na Cultura FM, era responsável pelo programa Canta Nordeste.
Assistia com frequência ao Canta Nordeste até o smartphone roubar meu tempo de escuta ao rádio. A Cultura FM, assim como a Nacional FM, eram minhas preferidas. Essa história é muito bizarra, está mais para enredo de filme de gângster do que qualquer outra coisa. Concordo com o produtor, é kafkiana e surreal. Pessoas honestas que se dedicaram voluntariamente ao desenvolvimento de um belo programa como é o Canta Nordeste serem escorraçadas dessa forma. Quanta degenerescência!
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É que estamos nos tenebrosos tempos dos governos bolsonariano e rochadeano (de enganeis). Toda a estupidez, dizem, é normalizada por estes dois governos.
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