Por Chico Sant’Anna

A tarde do dia 19 de junho é uma data para não ser esquecida pelos brasilienses. Nesse dia, o Governo do Distrito Federal passou o trator sobre a Câmara Legislativa do DF. Sem debate, sem transparência, com a maioria dos parlamentares desconhecendo em detalhes o que votava, foram aprovadas novas regras urbanísticas para o Plano Piloto, projetado por Lucio Costa e tombado pela Unesco. Daqui pra frente, o brasiliense vai começar a sentir na pele as alterações feitas a toque de caixa por uma maioria governista que nem se preocupou em fazer um debate do que estava votando.

A título de exemplo, os 16 pequenos hotéis existentes às margens do Eixo Monumental vão poder crescer até 13 andares. Para os moradores das residências da Asa Sul e Norte, que brigavam contra a existência de pensões, o fantasma ainda será maior: foi aprovada a emenda do distrital Thiago Manzoni (PL), pela qual os imóveis existentes do SGAN e SGAS, entre as vias W.4 e W.5, nas duas Asas, poderão abrigar alojamentos, hotéis, apart-hotéis e quem diria, motéis. Até mesmo o Colégio Militar, na Asa Norte, foi contemplado com a possibilidade de ali erguer um motel.

A oposição, com seis guerreiros até que tentou, mas os 18 do governo não queriam sequer debater o que estava sendo votado e reivindicavam a votação em bloco, para que tudo se resolvesse rapidamente.

Deputado Fábio Félix chegou a apresentar um destaque para que a autorização dos motéis fosse rejeitada, mas a tratorada novamente passou: 18 a 6.

Emenda do distrital Thiago Manzoni (PL), afiliado político da deputada federal Bia Kicis (PL), permitiu a instalação de moteis e outros tipos de alojamentos nas entrequadras 700/900, entre as vias W.4 e W.5, Norte Sul. O local é tradicionalmente dedicado a escolas e igrejas.

Thiago Manzoni, afiliado político da deputada federal Bia Kicis (PL), disse que a oposição de Félix aos motéis era ideológica e decorrente do fato de Manzoni ser do PL, partido de Bolsonaro. Deputada Paula Belmonte (Cidadania) chegou a cobrar transparência na análise do projeto, mas acabou se rendendo e apoiando o projeto enviado por Ibaneis Rocha, inclusive no que se refere à implantação de motéis em quadras da Asa Sul e Norte, ao lado de centros de ensino. Como se sabe, a maioria dos colégios do Plano Piloto, quando não está ao longo da via L.2, está exatamente nas vias W.4 e 5. As famílias de adolescentes certamente ficarão muito gratas com essa decisão dos nobres deputados distritais.

Dezesseis lotes de hotel de três andares foram contemplados com o direito de ampliar o gabarito para doze andares. Metade dos imóveis pertence a um mesmo grupo faniliar.

Adensamento

O projeto do PPCUB continha mais de mil páginas e anexos. Os distritais apresentaram outras duas centenas de emendas. Algumas delas chegaram a suscitar dúvidas sobre a lisura dessa alteração urbanística que atinge dezesseis hotéis de três andares de altura, que agora poderão ser ampliados para doze andares.

Conforme revelado pelas jornalistas Lilian Tahan e Isadora Teixeira, do portal Metrópoles, oito desses “hotéis baixinhos” pertencem a um mesmo clã familiar que teria pressionado fortemente o GDF e a CLDF. Alegavam que a não autorização do acréscimo de andares provocaria um prejuízo financeiro muito grande. Essa revelação levou o deputado Chico Vigilante (PT) a requerer da mesa que solicite à Polícia Civil e ao Ministério Público a investigação para apurar se não houve ilícito nesses entendimento. Fábio Feliz (Psol) afirmou da tribuna que o projeto do PPCUB não era um projeto de preservação, mas sim de negócios. Paulo Octávio, que é presidente do PSD-DF e havia se posicionado publicamente contra a elevação do gabarito dos hoteizinhos, viu os dois distritais do seu partido ignorando a tese dele. Jorge Vianna e Robério Negreiros votaram fechadinho com Ibaneis.

Pela complexidade e amplitude, o PPCUB deveria ter sido analisado e votado por partes, capítulos. Por exemplo, as normas ambientais, depois a transformação de uso de alguns lotes, mudanças de gabaritos e por aí vai. Deveria ter um capitulo que honrasse o nome da lei: que definisse as regras de proteção e preservação da área tombada. A futura nova lei tem de tudo, menos regras de preservação. Na verdade, aprovaram um plano diretor de ordenamento territorial para a área tombada, adensando o Plano Piloto.

Na ilustração do portal Metroples, a mancha em vermelho assinala como as novas áreas habitacionais estarão impedindo à chegada de populares às margens do Lago Paranoá, bem como à proximidade com a Lagoa do Jaburu e aos palácios da Alvorada e do Jaburu, residências oficiais da presidência e vice-presidência da República.

Vizinhos do Alvorada

Nesse adensamento, estima o distrital Gabriel Magno (PT) que entre 22 mil e 28 mil novas moradias deverão ser erguidas, muitas delas às margens do Paranoá. Somente no Setor de Clubes Sul, entre a Lagoa do Jaburu e o lago criaram espaços para 5 mil novos apartamentos. Ali deveria ser uma área de preservação ambiental e de segurança nacional, já que abriga as residências oficiais do vice-presidente e do presidente da República. Dessa forma, o Alvorada e o Jaburu deverão ter proximamente novos vizinhos e ficará mais difícil, se não impeditivo, o acesso de populares para desfrutar a orla do Paranoá. Na prática é a privatização da orla.

Essa é uma das alterações que fala direto ao interesse da indústria da especulação imobiliária no DF. Como salientamos aqui nesse blog em abril, o custo do metro quadrado para a locação de imóveis que mais se valoriza é exatamente dos condomínios estilo resort à beira do Paranoá. Ali, o metro quadrado vale o dobro dos apartamentos nas superquadras.

Unesco

Lideranças empresariais, como o presidente do Sistema Fecomércio-DF, José Aparecido Freire, e o empresário Paulo Octávio, acompanharam as votações de dentro do plenário. Deferência equivalente não foi concedida às lideranças comunitárias de moradores do Plano Piloto, que tiveram que acompanhar tudo da galeria de populares.

As alterações no Plano Piloto de Lúcio Costa, considerado pela Unesco patrimônio cultural da humanidade, podem levar a perda dessa distinção. A entidade, com sede em Paris e vinculada à Organização das Nações Unidas, emitiu uma nota solicitando que antes de ir a voto na CLDF, a proposta fosse por ela examinada para averiguar se alguma mudança poderia prejudicar a condição de patrimônio histórico. A CLDF ignorou o apelo.

Na porta de entrada de Brasília, às margens direita e esquerda do Eixão Sul e incluindo trechos do Setor Policial Sul foi destinada pelo GDF para implantar lojas, restaurantes e um camping. Ilustração portal Metropoles.

Há grande riscos de uma sanção por parte da Unesco. Afinal, a proposta do GDF prevê loteamentos nas entrequadras 300 da Asa Sul e Norte, edificação nos estacionamentos entre blocos das quadras 500 da W.3 Sul, permissão para que seja loteada a entrada do Plano Piloto, às margens direita e esquerda do início do Eixão Sul, para implantação lojas, restaurantes e um camping, autorização para que comércio varejista de alimentos, bebidas e material de construção se instalem nos setores de Embaixadas Sul e Norte e estabelece que todas as áreas verdes existentes entre lotes registrados até dezembro de 1979 sejam considerados propriedades da Terracap e, nessa condição, passiveis de virarem futuros novos lotes.  O mais grave, para fechar o estrago, é que os deputados distritais aprovaram a retirada do poder deles mesmos deliberarem sobre questões urbanísticas da área tombada e transferiram para o GDF, que doravante precisará apenas de um simples decreto para fazer novas alterações no Plano Piloto.

O projeto segue para a sanção do governador Ibaneis Rocha, não deve haver nenhum veto, pois tudo que foi aprovado foi feito sob o comando do Líder do Governo, distrital Robério Negreiros, que do alto da tribuna determinada como a bancada deveria votar, se sim, ou se não, de acordo com cada texto. E todos os 17 deputados da base governista obedeciam fielmente. Em vários momentos, também a deputada Paula Belmonte se uniu à tratorada governista.