Nos esportes, a expressão “deixa, que eu deixo” denuncia a falta de iniciativa por parte de dois ou mais jogadores. Um pensa que o outro vai agir e no fim, ninguém faz nada e o prejuízo é para o time todo. Essa mesma expressão pode qualificar a apatia dos ministérios da Justiça, Cultura e da Advocacia Geral da União, que colocou em risco de perda definitiva de um acervo de 17 pinturas de artistas consagrados, que já estava sob posse da União. Sem justificativa plausível, as obras de artes foram postas à privatização em leilão público.

São telas assinadas por personalidades como Cícero Dias, Manoel Santiago, Manabu Mabe, Orlando Teruz, Sílvio Pinto, Heitor dos Prazeres, Carybé, Roberto de Souza e tantos outros. Há ainda obras peruanas do estilo arte cusquenha. Apreendidas por ocasião da “Operação Voto Vendido” – realizada pela Polícia Federal, em abril de 2020, que investigava crimes de corrupção no judiciário do Rio de Janeiro -, estavam na residência do desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Mário Guimarães. Telas, joias e bolsas de grifes, num total de 102 lotes, foram a leilão público por determinação do ministro Félix Fischer, já aposentado do Superior Tribunal de Justiça.

No despacho o ministro determinou que a renda obtida fosse usada pela Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas – Senad, do Ministério da Justiça, para custear políticas públicas. Não houve a preocupação de enviar as obras a um museu ou pinacoteca pública. Em 2015, por exemplo, mais de cem obras apreendidas nas operações da Lava Jato foram remetidas ao Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba.

Quando essa coluna tomou ciência da venda, em 30/3, imediatamente acionou a classe política local e os ministérios envolvidos. Havia urgência, pois a data final do leilão era 17/4. Dia 3/4, a senadora Leila Barros (PDT-DF) oficiou ao ministro Jorge Messias, da AGU, sugerindo ao órgão, que tem a competência de representar os interesses da União junto à Justiça, tomasse a iniciativa de incorporar aquele “tesouro cultural” ao patrimônio da União, “ao invés de se transformar propriedade privada brasileira ou estrangeira”. Com o mesmo propósito, acionou o presidente do Instituto do Patrimônio Artístico Histórico e Cultural –Iphan, Leandro Grass.

Letargia

Teve então início a letargia. Somente no dia 16/4, um dia antes da data final do leilão, a Comunicação da AGU, informou por e-mail a essa coluna que ainda iria “consultar o Ministério da Cultura e Iphan para verificar se os órgãos têm interesse na adoção de medidas relativas às obras de arte.” Treze dias haviam se passado desde o ofício da vice-líder do governo, Leila Barros, e nada acontecera. Alertados por essa coluna que dia 17 era o deadline para qualquer inciativa, a AGU, enviou cópia do Despacho nº. 05741/2024/PGU/AGU, datado do mesmo dia 17, no qual afirma que “além do exíguo prazo, constata-se que não há elementos informacionais suficientes à atuação desta Procuradoria Nacional da União de Patrimônio Público e Probidade no presente momento perante o Superior Tribunal de Justiça – STJ, em face do andamento regular do leilão. Isso porque não se tem a mínima compreensão quanto aos interesses da União envolvidos e as razões que poderiam justificar eventual pretensão do ente central no âmbito do Poder Judiciário”.

Também, no dia 16, o presidente do Iphan, Leandro Grass, informou à coluna que “o Iphan não tem atribuição e nem competência institucional para orientar procedimentos dessa natureza, a não ser que fossem bens tombados. É uma situação atípica sobre a qual não encontramos precedentes na atuação do órgão.” Posteriormente, a assessoria do Iphan, burocraticamente informou que somente três das 17 obras de arte se enquadram nas categorias listadas pelo regramento oficial como ” obras de artes plásticas e visuais, produzidas no Brasil ou no estrangeiro até 1970, inclusive, de autoria consagrada pela historiografia da arte”, mas que isso não impediria a realização do leilão, nem mesmo a sua venda para estrangeiros. “O Iphan salienta, ainda, que não possui prerrogativa para a suspensão do leilão” – conclui nota.

“Não sou de desistir. Perdi uma batalha, não a guerra” – Leila do Volei que pretende continuar batalhando para que as obras de artes fiquem com o poder público. Foto de Jefferson Rudy/Agência Senado

A morosidade e a falta de sensibilidade de todos esses órgãos fez com que um acervo de importantes personalidades das artes plástica, já em poder da União, fosse colocado à venda, sem qualquer necessidade.

Por inércia governamental seriam privatizados bens culturais que deveriam estar expostos em museus, independentemente, de serem tombados ou não.

Mas o destino conspirou a favor da cultura e propiciou uma repescagem ao governo. Dos 102 lotes colocados à venda, apenas duas bolsas encontraram compradores. O restante, incluindo as 17 telas, retorna agora à Senad. Uma rara oportunidade para que o governo tome a iniciativa e incorpore definitivamente esse “tesouro cultural”, como classificou a senadora Leila Barros, ao Patrimônio Público.

“Não sou de desistir. Perdi uma batalha, não a guerra” – disse ela, que já apresentou projeto de lei tornando obrigatória a transferências a museus e instituições públicas afins, todas obras de artes e antiguidades apreendidos judicialmente ou em operações policiais.