O GDF está proibido de remover a horta, criada por uma moradora em 2006 e que abastece a comunidade com ervas e temperos de mais de 100 espécimes, dentre frutas, temperos e ervas medicinais. “A área pública em questão não está sendo apropriada por um particular em benefício próprio e exclusivo, conforme o melancólico e extremamente danoso costume nesta capital” – sentenciou o juiz Carlos Maroja. 

 

Por Chico Sant’Anna

A horta comunitária da 713 Norte tem direito a criar raízes. Assim deliberou o juiz Carlos Maroja, da Vara de Meio Ambiente, Desenvolvimento Urbano e Fundiário do DF, do Tribunal de Justiça do DF. A decisão é de caráter liminar ainda, mas impede que o GDF venha a demolir uma horta de plantas medicinais e de temperos criada pela escritora Sandra Fayad, na área verde fronteiriça a sua casa, na HIGN 713. Há dois anos, Sandra briga na Justiça contra o GDF que deseja remover a horta, aberta à toda comunidade.

Na sentença, o Juiz Carlos Frederico Maroja afirma que a área pública em questão não está sendo apropriada por um particular em benefício próprio e exclusivo, “conforme o melancólico e extremamente danoso costume nesta capital.”

“Muito pelo contrário: vem sendo cuidada e recebendo tratamento ambiental em prol da comunidade, com a garantia de acessibilidade a todos. Trata-se do exercício aparentemente legítimo do direito à cidade, conforme o princípio republicano orientado para o bem comum, e consentâneo com a norma constitucional acima mencionada.”

A horta

A horta foi criada por Sandra em 2006. Desde então ela briga contra tudo e contra todos para levar a ideia à frente. Em 2009, conforme noticiou o Correio Braziliense, a horta, qye funciona como viveiro comunitário, foi alvo de vândalos que detonaram a plantação. “Arrancaram os bambus, a jurubeba está com os galhos quebrados e a cerca viva acabou no chão.

Quando vi aquilo, tive a impressão de que as plantas estavam chorando e chorei também, disse Sandra ao CB, em 2009. “O estrago comprometeu o sistema de irrigação e a estrutura do criadouro de minhocas. Restos de troncos e vasos quebrados revelam os danos causados no local. Os canos estão rachados e não servem mais para levar água às plantas. Cinco pés de funcho e três de mamão foram partidos ao meio e abandonados no local” – noticiou o jornal.

A horta oferece frutas, temperos e ervas medicinais de 103 espécies para os moradores vizinhos, desde 2006. O espaço conta com sistema de irrigação próprio, cerca viva e cobertura de sombrite, para proteger as plantas. As espécies são identificadas por placas e há panfletos informativos por toda parte. Fica aberta 24h. Para manter tudo em ordem, Sandra dedica o tempo livre à poda, adubação e a outros cuidados. ;

Maroja fez questão de diferenciar a iniciativa da horta em detrimento das áreas verdes privatizadas no Lago Sul, sobre as quais, recentemente, ele concedeu um prazo de 30 dias para que o GDF apresentasse o cronograma de liberação das passagens de pedestres – previstas no projeto urbanístico do Lago Sul e Norte, mas apropriada por muitos moradores.

“A área pública em questão não está sendo apropriada por um particular em benefício próprio e exclusivo, conforme o melancólico e extremamente danoso costume nesta capital. Muito pelo contrário: vem sendo cuidada e recebendo tratamento ambiental em prol da comunidade, com a garantia de acessibilidade a todos. Trata-se do exercício aparentemente legítimo do direito à cidade, conforme o princípio republicano orientado para o bem comum, e consentâneo com a norma constitucional acima mencionada” – sentencia ele.

O Juiz considerou “absurda” a iniciativa do GDF em tentar demolir a horta-viveiro. “A investida afigura-se ainda mais absurda quando se recorda a incrível leniência da mesma Administração (Pública) para com invasões e degradações de áreas públicas não raro de elevada sensibilidade ambiental para o estabelecimento dos inúmeros núcleos urbanos informais que hoje constituem a moradia de mais de 30% da população distrital – o que é causado, diga-se de passagem, sobretudo pela deficiência, para não dizer ausência de políticas habitacionais racionais e adequadas. Ou quando se recorda que as sentenças desta Vara do Meio Ambiente relativas à recuperação da APP da Orla do Lago Paranoá e à desobstrução das invasões sobre os acessos de passagens de pedestres e equipamentos públicos nos ricos bairros dos Lagos estão há anos sendo solenemente descumpridas pela mesma Administração que agora resolveu investir contra a horta comunitária. Pior: não apenas descumpridas, mas atacadas pelo próprio GDF, que promoveu inacreditável ação rescisória contra a decisão que exige a retomada de bens de uso comum do povo das mãos de particulares que delas se assenhoraram para fins egoísticos, sem qualquer benefício à comunidade (muito pelo contrário).”

Criada em 2006, a horta-viveiro ocupa uma pequena área de 3,80 m por 11 m, que foi revitalizada e transformada em horta orgânica de ervas medicinais e condimentos. O trabalho de limpeza e tratamento da terra durou um ano, de 2006 até 2007. Em julho de 2007, foram realizadas as primeiras colheitas e doação à comunidade. No local há um acervo de mais de 100 espécies, as quais são pesquisadas e os resultados sobre as características e benefícios de cada espécie é divulgado junto à comunidade. A iniciativa também incentiva junto aos moradores a reciclagem de embalagens. Segundo os organizadores, o local recebe a visita diária de cerca de vinte moradores.

Essas características coletivas chamaram a atenção do Juiz Carlos Maroja, que em sua sentença sublinhou a “flagrante a desproporcionalidade, para não dizer injustiça, da investida da Administração (Pública) contra um uso coletivo e ambientalmente interessante de área pública diante da constatação de que a mesma Administração luta, por meio de ação rescisória e de casuístico projeto de lei visando assegurar a apropriação exclusiva, por ricos particulares, de áreas públicas de uso comum do povo, numa das regiões mais ricas do país. Reitero e enfatizo o estranhamento: ao mesmo tempo em que defende interesse de particulares que promovem invasões em áreas nobres da cidade, o GDF investe contra uma horta comunitária criada por uma cidadã e aberta ao povo.”

Os moradores ainda bancam o custo de trabalho de técnico agrícola contratado. E disponibilizam o espaço a oficinas, feiras de ciências em escolas, visitação de escolares e projetos sociais.

Patrimônio Cultural

“A apropriação da cidade para usos comunitários razoáveis não é incompatível com o tombamento da cidade-monumento Brasília – continua Carlos Maroja -. Muito pelo contrário. Sabe-se que o que foi reconhecido como patrimônio cultural da Humanidade em Brasília não foi apenas o aspecto de seus prédios históricos, mas sobretudo sua singular concepção urbanística, num justíssimo reconhecimento ao trabalho dos gênios Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. Ao mesmo tempo que apelava à consciência civilizatória dos moradores do Lago, que desde a infância da cidade já promoviam ocupações irregulares do que passou-se a chamar eufemisticamente de “áreas verdes” das propriedades, Lúcio Costa recomendava que as linhas de calçadas que cortariam eventualmente as áreas verdes da escala bucólica seguissem os “caminhos de rato”, ou seja, as trilhas abertas pelo pisoteio de populares em meio à vegetação. Tal recomendação denota a nítida preocupação para com a apropriação de Brasília pela sua população, que fora contemplada não apenas com a mais ampla liberdade de locomoção em todas as direções (não por acaso os prédios de Brasília “flutuam” sobre pilotis), mas com um parque-pomar aberto a todos. Uma horta-viveiro comunitário não parece destoar desse projeto, ao menos em linha de princípio.”

Maroja concedeu a liminar para que a horta não correse o perigo de ser destruída, causando prejuízo de difícil reversão. O mérito da ação ainda será julgado e não está descartada a hipótese de se realizar uma audiência pública para saber o que a comunidade lindeira pensa. Até lá, o GDF está proibido de tentar remover a horta.