Por Chico Sant’Anna

Obras exemplares da potencialidade das artes plásticas brasileiras, como Abaporu, de Tarsila do Amaral, já não se encontram mais no Brasil. Foram vendidas para o exterior. Agora, um expressivo acervo artístico em posse do Estado brasileiro está prestes a mudar de mãos e ser privatizado, privando a sociedade de ter acesso a ele. Podem igualmente ir parar no exterior. São 17 obras de artistas consagrados, como Cícero Dias, Manoel Santiago, Manabu Mabe, Orlando Teruz, Sílvio Pinto, Heitor dos Prazeres, Carybé, Roberto de Souza e tantos outros. Há ainda obras peruanas do estilo arte cusquenha.

São lotes de um leilão em favor do Ministério da Justiça, que já acontece de forma virtual e se encerra no próximo dia 17 de abril. Todos estão com documentos que comprovam a originalidade e autenticidade das pinturas. Instituições como o Ministério da Cultura e o Instituto Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desconheciam a venda autorizada pela justiça que, se levada a cabo, levará importante acervo da cultura nacional para proprietários particulares.

O leilão eletrônico inclui ainda 80 bolsas de marcas famosas, como Chanel, Christian Dior, Louis Vuitton e Hermé, com valores estimados em R$ 55 mil, cada; joias, itens com diamantes, das marcas Cartier e Bulgari, além de um relógio Cartier Swiss. Os bens foram apreendidos na “Operação Voto Vendido”, realizada pela Polícia Federal, em abril de 2020, que investigava crimes de corrupção no judiciário do Rio de Janeiro, contra o sistema financeiro nacional e lavagem de dinheiro. Noticiário do jornal O Globo da época, fala na apreensão de 20 quadros, mas só 17 estão nesse leilão. Os valores arrecadados vão para os cofres da União e serão revertidos para políticas públicas.

A obra com maior avaliação financeira é um óleo sobre tela de Orlando Teruz, da série cavalos, datada de 1965 e medindo 95 x 128 cm, retratando indígenas com cavalos. Foi avaliada em R$ 509.643,00. Com obras até no Museu Hermitage, de São Petesburgo, na Rússia, Teruz foi parceiro de Lucio Costa e Cândido Portinari. Segundo o jornalista e crítico de arte, Carlos Heitor Cony, seu estilo “aproxima-se muito da produção de Candido Portinari, com quem conviveu desde a formação na Escola Nacional de Belas Artes – Enba, no Rio de Janeiro”.

Outro óleo sobre tela, esse medindo 74 x 61 cm, de Cícero Dias, da série mulheres, foi avaliado em R$ 484.569,00. Integrante do movimento modernista, suas obras são consideradas pela crítica especializada como uma das principais contribuições da arte brasileira para o movimento surrealista.

Um terceiro óleo sobre tela, com um desenho abstrato, de 1989 e de autoria do pintor japonês radicado no Brasil, Manabu Mabe, destaca-se em valor: R$ 189.382,00. A característica marcante desse nissei, falecido em 1997, é o abstracionismo, que se revela nessa obra à venda no leilão.

Multi-artista

Com uma tela sobre óleo, que retrata uma roda de samba num quintal, Heitor dos Prazeres desponta como a quarta obra mais valiosa: R$ 42.499,00. Considerado um multi-artista, segundo a crítica especializada, ele uniu a música e a pintura para se expressar artisticamente. Pinturas marcadas pela forte presença de temáticas afro-brasileiras, de cenas do cotidiano carioca e o uso de cores expressivas.

Carybé

Argentino, mas apaixonado pelo Brasil, Hector Carybé também está na lista dos leiloáveis com três pinturas. A mais accessível, R$ 6.539,00, um nanquim aquarelado sobre placa metálica, ao contrário do seu gosto de retratar a cultura afro-brasileira, como ele gostava, foca uma mulher branca.

Há diversas outras obras elencadas com diferentes valores. O maior valor, contudo, é o que elas representam para a história cultural e o patrimônio artístico nacional.

O que antes estava em uma sala particular, fruto da corrupção, segundo a justiça, deve agora estar acessível a sociedade como um todo, em museus e pinacotecas públicas. Inclusive, com um objetivo pedagógico. Nesse momento, a melhor política pública – para onde se destinam os recursos arrecadados – é não só de educar artisticamente nossa sociedade mas, principalmente, demonstrar como o submundo age e se vale das obras de arte para lavar dinheiro e esconder fortunas.

A coluna contatou autoridades governamentais e políticos, na expectativa de sensibilizá-los a interceder para que essa venda não se materialize e, quem sabe, Brasília que teve suas obras de artes tão maltratadas em 8 de janeiro, pudesse ser agraciada com tão significativo acervo. Torçamos para que tenham sucesso.