Executivo e Legislativo federais esquecem que as cidades e os estados possuem realidades diferenciadas, obrigações próprias, determinadas pela Constituição, as quais devem cuidar e custear, parcial ou integralmente. Por exemplo, a Saúde, Segurança e Educação Públicas.

Por Chico Sant’Anna*

Ao contrário de países como França, Chile e Portugal, a organização política do Brasil se dá por meio do sistema federativo. Inicialmente, as unidades da Federação eram apenas os Estados, mas a Constituição de 1988 incluiu, também, os municípios dentre os entes federativos. O que significa isso? É como se fosse um imenso condomínio, no qual os condôminos são os municípios, estados o Distrito Federal e a União. Cada um tem seus deveres e direitos e um não deve entrar no assunto do outro. No popular: cada um no seu quadrado.

E isso ficou bem claro nos meses iniciais da Pandemia da Covid, em que o Governo Federal quis impor regras aos demais integrantes da Federação. O Supremo Tribunal Federal assegurou a prefeitos e governadores – a contragosto do presidente da República – que esses não seriam bonecos de marionetes e todos teriam poder para decidir o que fazer, mesmo que o decidido fosse diferente do município ou estado vizinho

O fenômeno da Pandemia não foi, contudo, suficiente para conscientizar a classe política, os dirigentes federais que a Federação existe. Perdura um desejo latente de centralizar tudo, de que as regras definidas no Planalto Central tenham valor do Amazonas aos Pampas. Um bom exemplo são a reforma fiscal e as recentes decisões de fixar limites de tributação dos Estados e Municípios sobre combustíveis, energia e telecomunicações.

Executivo e Legislativo federais esquecem que as cidades e os estados possuem realidades diferenciadas, obrigações próprias, determinadas pela Constituição, as quais devem cuidar e custear, parcial ou integralmente. Por exemplo, a Saúde e Educação Públicas. Quem banca as unidades básicas e as escolas de nível fundamental são os prefeitos – mesmo que para isso contem com alguma ajuda federal. Hospitais mais complexos e ensino médio estão na alçada dos governadores. O transporte coletivo é competência do município e quem paga a segurança pública é o governo estadual.

Assim, não dá para o Congresso Nacional e o Palácio do Planalto posarem na selfie, bonitinhos, como quem está amenizando a vida dos brasileiros. Há de se perguntar: se faltar dinheiro, quem vai pagar o salário do professor, do agente de saúde, do policial civil ou militar? Serão os líderes partidários? Na hora das contas desarrumadas, dos déficits orçamentários, as estrelas de hoje vão desaparecer.

Camisa de força

A unificação tributária nacionalmente, além de ferir o princípio federativo, é uma camisa de força pouco inteligente e que contribui para manter congelada a situação de desenvolvimento econômico e social. Não por menos, decisões liminares do STF estão determinando que a União reembolse os Estados pelas suas perdas de receita com o teto da aliquota do ICMS sobre combustiveis.

Essa camisa de força será ainda mais forte se impostos estaduais, municipais e federais forem unificados em um só. Com os impostos das três esferas da federação em uma só aliquota, arrecada pela Receita Federal, qualquer ação da União – como a recente redução do IPI – afetará as finanças de todos. Flexibiliza em Brasília e arrocha as contas em todo o Brasil.

Há de se mirar nos impostos estaduais e municipais, tais como IPTU e IPVA, fixados de acordo com a realidade contributiva dos cidadãos e das necessidades do Poder Público local. Alguem imaginou que o IPTU da avenida Paulista possa ser igual ao de Sobral, no Ceará? Da mesma forma, o imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS deve ter a liberdade de variar de acordo com as políticas públicas de cada estado. A constituição deveria prever, inclusive, a possibilidade de estados e municipios adotarem impostos diferenciados, como por exemplo um imposto ambiental.

Assimetrias regionais

A unificação tributária, como se o País fosse uno e indivisível, não favorece a correção das assimetrias existentes regionalmente. Ela impede, por exemplo, que um determinado Estado adote uma política fiscal ambientalmente mais correta, concedendo incentivos fiscais a quem produz ou consome energia limpa, a quem reusa a água ou implanta captação da chuva. Ela obriga, por exemplo, estados produtores de etanol ou biodiesel a ter política tributária semelhante à aplicada ao diesel ou a gasolina importados do outro lado do planeta. A produção local e, consequentemente, a geração de emprego e o desenvolvimento social são prejudicados, na medida em que os gestores locais ficam impossibilitados de adotarem políticas fiscais diferenciadas.

Ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, ou em outras repúblicas federativas, fica impossível a um governador propor condições fiscais mais tentadoras a camioneiros, por exemplo. Se o imposto sobre combustíveis em Goiás fosse menor do que o do DF, a ponto de fazer com que o abastecimento se dê no melhor local, certamente motoristas deixariam para abastecer em Goiás. Internacionalmente, políticas fiscais diferenciadas são usadas por pequenos países para impulsionar suas economias. Panamá e Libéria possuem as maiores frotas de navios mercantes, tudo por conta dos impostos aplicados sobre os armadores nesses países. Forçar a unificação de tributos prejudica a livre concorrência e o consumidor.

Quem conseguiu se diferenciar tributariamente no passado logrou êxitos. A cidade de Fortaleza, por exemplo, ganhou um hub (centro de conexões) da Air France e KLM pelo fato de tributar o ISS em alíquota menor do que o Distrito Federal vinha aplicando a mesma cia aérea. Quem perdeu? A economia de Brasília que viu desaparecer os voos internacionais da companhia francesa. Se tudo for igual, custar a mesma coisa, os centros mais desenvolvidos vão perdurar como o são e os menos favorecidos, condenados a essa sina.

A unificação de tributos federais, estaduais e municipais, como proposto no Congresso, pode até interessar às empresas que alegam existir no Brasil 27 regras diferentes de impostos, o que encarece a gestão delas. Nos Estados Unidos são 50 modelos fiscais distintos. Há até casos de imposto de renda pessoa física estadual e municipal.

O debate da reforma fiscal deve ser feito, então, sob a ótica de dotar os gestores públicos de autonomia para implantarem as melhores políticas. Uns poderão chamar de Guerra Fiscal, outros de autonomia federativa. Foi isso, contudo, que nas últimas décadas permitiu um melhor desempenho industrial a estados como Goiás e Ceará. Pensar num modelo centralizado, no estilo camisa de força, é ignorar as especificidades ambientais, econômicas, sociais e culturais de cada cidade ou Estado. O Pacto Federativo deve ser mantido e até mesmo reforçado, como o foi na Pandemia da Covid.

*Jornalista e Doutor em Ciências da Informação e Comunicação pela Universidade de Rennes 1 – França.