Texto de Chico Sant’Anna. Ilustração de Fernando Lopes.

Estava a caminhar, quando zumbidos me chamaram a atenção. Pareciam enxames de abelhas por todos os lados. Olhei aos céus e me deparei com um trânsito maluco de veículos voadores, drones, transportando cargas e pessoas, a maioria com uma única pessoa. O trânsito terrestre já não mais andava e o aéreo era uma loucura.

Me chamou, ainda, a atenção o fato de que o céu não era mais azul, aquele mar de Brasília, como dizia Lucio Costa. Uma grossa camada marrom, composta de dióxido de carbono (CO²) metano (CH4) e óxido nitroso (N²O), emanados do intenso trânsito de veículos, pairava no ar e impedia até de se ver a luz do Sol.

No horizonte, um grande paredão de arranha-céus cercava a área tombada do Plano Piloto. Brasília estava sitiada por concreto e vidro, não havia mais verde. Nem mesmo a Serrinha do Paranoá resistiu. A centena de nascentes que lá brotavam deram lugar a uma nova região administrativa, cheia de concreto e asfalto e duas novas pontes já engarrafadas.

Mesmo na área tombada, áreas verdes haviam desaparecido. O canteiro central do Eixo Monumental, entre a Praça do Cruzeiro e a EPIA fora todo loteado. Na Esplanada, um grande shopping, travestido de garagem subterrânea, sugava e rutilava veículos sem parar. Puxadinhos, quiosques, barracas tomaram o que outrora eram jardins e gramados. Não se via, nem se escutava mais passarinhos no interior das quadras.

A Vila Planalto sucumbira à especulação imobiliária: blocos residenciais tomaram o espaço das casas dos pioneiros. Os terrenos escolares haviam sido vendidos e no lugar de classes havia de tudo que poder-se-ia pensar. Era a tal da “des-setorialização” do Plano Piloto, defendida por empresários e governantes nos anos de 2020.

No centro da cidade, espigões tomaram o lugar dos hotéis baixinhos. Um grande shopping circunda o Mané Garrincha. No Setor Comercial, em meio a latarias amassadas e resto de peças mecânicas, o óleo de veículos – terrestres e aéreos – escorria pelas ruas até chegar ao Lago Paranoá. Tudo fruto de uma mudança de uso do SCS aprovada pela Câmara Legislativa, em 2023.

As redes púbicas de ensino e saúde já não mais existiam. Uma tal de Silver Net, depois de comprar as clínicas privadas, assumira as principais unidades hospitalares públicas, sob a proteção de uma tal de PPP. Configurava-se o monopólio dos serviços de saúde. O mesmo ocorrera com as escolas públicas, encampadas por fundos de investimentos estrangeiros.

Cada passo dado pelo o que outrora fora um Patrimônio Cultural da Humanidade, um susto maior.

Decidi pegar então o metrô. Mas onde estava o metrô? Mais parecia um museu, tipo os que onde conhecemos, quando crianças, as locomotivas Maria Fumaça. As composições ainda eram dos anos 1990. Andavam lentamente, quebrando a cada centena de metros. Nenhuma melhoria de mobilidade urbana houvera sido implantada. Nem mesmo o VLT da W.3, muito menos a extensão do metrô para a Asa Norte. Para a região metropolitana, o Entorno, não existia qualquer transporte sobre trilhos, ônibus velhos e caquéticos ainda transportavam as pessoas espremidas como sardinhas em lata.

Busquei a Água Mineral para espairecer. Não achei. No local, um grande centro de convenções, shopping e apenas uma bica espargia escassas gotas de uma água fétida. Aquela cena me deixou ainda mais desesperado. Corri pra área rural, respirar ar puro. Ver a natureza. Qual nada. A expansão de Brasília havia conurbado aos municípios do Entorno. De Unaí a Luziânia era uma mancha urbana só, onde cerca de nove milhões de pessoas moravam. Expansão que já rumava à Chapada dos Veadeiros, onde grandes condomínios fechados monopolizavam as cachoeiras.

Todas essas cenas foram dando um aperto no coração. Que pesadelo! Ao avistar um painel a laser, me dei conta que o calendário marcava 21 de abril de 2123. Brasília estava a completar 163 anos de fundação. Mas seria esse o fatídico destino da cidade parque idealizada, nos anos de 1950, por Lucio Costa, Burle Marx e tantos outros visionários? Onde o leite e mel iriam escorrer para uma nova civilização? Como deixou-se essa cidade chegar até aqui deteriorada assim?

Eis que um novo ruído agudo toca. Era o celular. Acordo e vejo que tudo não passou de um terrível pesadelo. Ufa! No celular, meu amigo Joffre alerta que o Governo do Distrito Federal está realizando audiência públicas para debater o novo Plano Diretor de Ordenamento Territorial do DF (Pdot) – a lei que vai definir quais áreas do DF poderão ser ocupadas doravante e com que propósito -; bem como a Câmara Legislativa analisa o Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília (Ppcub), que em tese visa proteger o Plano Piloto de ideias especulativas, mas que tudo pensado por Lucio Costa pode ser alterarado.

Oportunidade ímpar para que evitemos que no próximo século, Brasília se transforme nesse pesadelo, e que uma nova Capital tenha que ser erguida, assim como o Egito faz agora. A capital Cairo já não tem mais conserto. A saída foi erguer uma nova cidade, que traz princípios urbanísticos semelhantes aos que ora desejam revogar em Brasília.

Vamos deixar acontecer o mesmo?

Acorda Brasília!