Ao longo de sua história, dentre as diversas rusgas com o poder, uma passagem marcou claramente o incômodo que o Pacotão exerce sobre os mandatários. Em pleno governo de José Sarney, com composição de Pelágio Gondim, o Pacotão ironizou a interferência do Planalto na exibição do filme Je vu salue, Marie, de Jean-Luc Godard.

Por Chico Sant’Anna

Pelo segundo carnaval consecutivo, o governador Ibaneis Rocha não será lembrado no samba enredo do Pacotão. Um feito importante. Seu antecessor, Rodrigo Rollemberg, já no primeiro carnaval, em 2015, foi musa inspiradora dos pacoteiros na marchinha Enrola um Beck, que fazia menção a falta de iniciativa do GDF sob sua gestão. O sucesso mesmo foi em 2017, com Banho tcheco, referência ao racionamento d’água. Na era Ibaneis, o primeiro desfile teve Lula Livre como tema. E nesse ano, quem vai entrar na W.3 pela contramão é o Queiroz – Fabrício Queiroz, tido como o homem dos números da família Bolsonaro.

Maria Sabina e Assis Aderaldo e Sóter são os autores de Contra o fascismo na contramão, samba enredo do Pacotão para 2020.

Dentre 23 composições, Contra o fascismo na contramão, de autoria de Sóter, Maria Sabina e Assis Aderaldo, teve escolha unanime do júri de nove jurados. Coisa rara no Pacotão, cuja marca registrada é a irreverência e quebrar a ordem das coisas.

Já na primeira estrofe, os compositores dão o tom. Confira a letra:

“O Pacotão vai escrachar nesse carnaval,
essa milícia e também o laranjal.
O seu Queiroz, que vida boa,
engordando a rachadinha da patroa.
Esse Queiroz né mole, não,
também remexe no cofrinho do patrão.
Mas esse ano a coisa muda.
Vamos Mandar essa cambada pra Papuda.
Contra o Fascismo, Luta do povo,
Tem Pacotão vindo na contramão de novo.”

Confira no vídeo a marchinha do Pacotão 2020

Charles Preto

Para os mais jovens, é bom lembrar que o Pacotão nasceu em plena Ditadura, logo após o general Ernesto Geisel editar o Pacote de Abril. Para o carnaval de 1979, o então diretor do Departamento de Turismo do DF – Detur, Carlos Black, proibiu os desfiles, que tradicionalmente ocorriam na Avenida W.3. Dessa forma nasceu, Charles Preto, o comandante supremo, vitalício e plenipotenciário do Pacotão. Ele e o politburo da Sociedade Armorial Patafísica Rusticana – O Pacotão decretaram que o desfile seria na W.3 e pela contramão. Saída na 302 Norte, no antigo bar Chorão, e chegada na CLS 402 Sul.

Sarney

Ao longo de sua história, dentre as diversas rusgas com o poder, uma passagem marcou claramente o incômodo que o Pacotão exerce sobre os mandatários.

Em pleno governo de José Sarney, com composição de Pelágio Gondim, o Pacotão ironizou a interferência do Planalto na exibição do filme Je vous salue, Marie, de Jean-Luc Godard.

Considerado sacrílego por alguns, o filme buscava contar como se daria o mistério da natividade de Jesus, nos dias de hoje. Como agora no episódio de Natal do Porta dos Fundos, incomodou a muitos cristãos e conta a lenda que a então primeira dama, Dona Marly Sarney, pediu que fosse impedida sua exibição no Brasil. Em Brasília, para não configurar uma censura, em plena Nova República, o filme só foi exibido no Gama.

No Pacotão toda essa história virou samba, o que incomodou muito Sarney. Esse teria pedido a assessores para que o samba fosse alterado. Obviamente, não teve êxito e sobrou até pra o então governador do DF, por Sarney indicado, José Aparecido, que se confrontava com uma hiper contaminação do Lago Paranoá. Assim nasceu Je vus salue, Marly, um dos maiores sucessos carnavalescos, que fez toda a W.3 cantar:

O Pacotão já liberou.
Je Vus Salue, mari juana.
Pra passar em Copacabana,
ou lá no cine do Gama.
Mas se o Sarney for censurar,
Vai com o Jânio no Columbia passear.
E apareceu o Aparecido pra brincar no carnaval.
Tem coliforme fecal.
Taí, taí, Je vu salue, Marly.

Será assim com o Queiroz?