Foto de Ana Volpe/Agência Senado

Compreender Brasília vai muito mais além do que entender seus endereços sem nomes de ruas e cheio de siglas. Compreender Brasília envolve mergulhar nas esperanças de cada um dos candangos que para aqui vieram. Brasília trouxe em si uma atitude de auto-afirmação dos brasileiros, um projeto de nação, o início do Brasil do futuro, o abandono do complexo de vira-lata, tão bem colocado por Nelson Rodrigues. 

Por Chico Sant’Anna
Jornalista, pioneiro e filho de pioneiro

Há pouco mais de seis décadas, brasileiros de todos os rincões e até mesmo alguns estrangeiros deram início a uma grande marcha em direção do Planalto Central. Era o projeto de Brasília que atraia milhares de pessoas. A atração, contudo, não se limitava à possibilidade de se ganhar mais dinheiro. O que movia a muitos era a utopia de um novo Brasil, de uma nova sociedade, onde prevalecessem os sentimentos de igualdade e de harmonia. Talvez por isso, alguns críticos dizem que era um projeto socialista. E se fosse? Brasília representava muito mais do que a expressão de uma pós-modernidade urbanística e arquitetônica. Brasília trouxe em si uma atitude de auto-afirmação dos brasileiros, um projeto de nação, o início do Brasil do futuro, o abandono do complexo de vira-lata, tão bem colocado por Nelson Rodrigues. O orgulho de ter se construído uma cidade no meio do cerrado deveria ser bem maior do que a alegria de ser hexa campeão mundial de futebol.

Compreender Brasília vai, portanto, muito mais além do que entender seus endereços sem nomes de ruas e cheio de siglas. Compreender Brasília envolve mergulhar nas esperanças de cada um dos candangos que para aqui vieram. É verdade que alguns interesseiros encheram a burra de dinheiro e foram para outras paragens, mas a imensa maioria aqui fincou raízes e constituiu uma sociedade peculiar. A vitória desse projeto de nação, pode ser mensurada, por exemplo, no nível educacional dos brasilienses. O Distrito Federal é hoje a unidade da Federação com maior escolaridade do país. Dois, em cada dez brasilienses, tem ensino superior completo. A taxa média de anos de estudos equivale ao ensino médio completo e o percentual de analfabetismo candango tem padrões de Santa Catarina. Tudo isso, é claro, se reflete em emprego, renda, em padrão de moradia, enfim, em qualidade de vida.

A cidade não trouxe benefícios apenas para os que para aqui vieram morar. Como previa seu projeto desde o tempo do Império, ela irradiou desenvolvimento, emprego, economia, saúde e educação a milhares, quiçá milhões, de brasileiros desses grandes sertões. O próprio IBGE atesta que nos dias de hoje, consumidores de 99 cidades de Goiás, Minas Gerais, Piauí e Bahia buscam na Capital Federal os artigos de vestuário e calçados, móveis, eletrodomésticos, aparelhos eletrônicos e de informática. Brasileiros viajam mais de 300 km para encontrar aqui, a atenção em saúde que necessitam. Isso sem contar com os milhares que vem estudar na cidade, especialmente na Universidade de Brasília, igualmente tão incompreendida pelas autoridades federais.

Publicada originalmente na coluna BRASÍLIA, POR CHICO SANT’ANNA, no semanário Brasília Capital.

Desigualdade social

É verdade que existe desigualdade social. Mesmo assim, o DF, segundo o IBGE, tem a quinta menor proporção de domicílios em favelas, invasões ou comunidade: 6,65% dos domicílios estão em aglomerados subnormais, segundo a terminologia técnica. E ainda assim, é uma situação menos pior do que a da VelhaCap, o Rio de Janeiro, que possui 4,6 vezes mais casas em favelas do que a Nova Capital. Com São Paulo não é diferente. A Locomotiva Econômica não olha pro umbigo, não repara suas desigualdades. Possui mais de duas mil favelas que abrigam cerca de 13 milhões de moradias. A desigualdade social é, pois, uma chaga nacional, que precisa ser urgentemente reparada.

Em relação a Brasília, existe um sentimento que mistura incompreensão do seu papel, inveja, despeito e até saudosismo, para não falar em ódio. Isso ficou marcante no governo de Fernando Henrique Cardoso, quando sob pressão carioca, fez retornar ao litoral organismos federais que já estavam em funcionamento em Brasília. Muitas agências, como é o caso da Agência Nacional do Petróleo – sucedânea do Departamento Nacional de Combustíveis, tiveram suas sedes fixadas no Rio de Janeiro. Ainda hoje, autoridades governamentais relutam em aceitar Brasília como Capital do Brasil. Exemplos marcantes é a presidência do Banco do Brasil, que montou gabinete no Rio de Janeiro, e da ex-secretária de Cultura, Regina Duarte, que desejava despachar a partir de São Paulo.

Verborragia deseducada

O ápice dessa restrição a Brasília, que deveria ser orgulho de todo brasileiro, foi a verborragia do ministro da Educação, Abraham Weintraub. Em reunião ministerial disse querer “acabar com essa porcaria que é Brasília. Isso daqui é um cancro de corrupção, de privilégio. Eu não quero ser escravo de Brasília. Eu tinha uma visão negativa de Brasília e vi que é muito pior do que eu imaginava.” Mais grave, nenhum ministro, ou mesmo o presidente da República, Jair Bolsonaro, fizeram qualquer reparo aos adjetivos usados por Weintraub.

É mais uma demonstração dos sentimentos, que nesse caso chegam a beirar o ódio e a raiva. O brasiliense já está – infelizmente – acostumado com as agressões que recebe, na maioria das vezes, decorrentes do comportamento social que prospera na Esplanada dos Ministérios. Uma Esplanada ocupada por moradores transitórios, importado de outras paragens, e que possuem condições diferenciadas de moradia, de transporte oficial, de atenção em saúde e educação, de cartão corporativo pago pelo contribuinte. Aquilo que se padronizou chamar de mordomia. Mordomia que fica longe dos três milhões de habitantes que lutam dia-a-dia pelo seu ganha-pão. De quem não tem carro oficial na porta e se submete a um transporte coletivo de péssima qualidade, dependente de uma Saúde e Educação públicas cada vez mais sucateadas, mas que batalham todos os dias. E sabem que, principalmente, pela Educação, poderão ter um futuro melhor.

Silêncio ensurdecedor

Dizer que “em Brasília só tem ladrão “, que a “Brasília é um cancro da corrupção” já deveria ter provocado reações contundentes por quem recebeu a missão de nos representar. A Câmara Legislativa, tão ágil em aprovar seguro-saúde vitalício aos seus ex-distritais, se calou. Nenhuma moção em desagravo aos brasilienses, nenhuma moção declarando persona non grata, o deseducado ministro da Educação. O que dizer de nossos onze parlamentares federais? Nem mesmo uma “live” coletiva para defender aqueles que lhe concederam o mandato político? Mas o coordenador da bancada candanga é vice-líder do governo Bolsonaro. Esperar, então, o que? E o senhor governador? No Buriti, local de onde são férteis as contundentes declarações governamentais, reina silêncio ensurdecedor.

Ao completar 60 anos, Brasília e os brasilienses devem ter em mente mais uma preocupação. Ao lado daqueles que querem lotear tudo – se bobear até o Eixo Monumental – degradar o nosso verde, privatizar a nossa saúde e educação, enfim detonar o projeto de Lúcio Costa, surge agora aqueles que chegam ao poder com o anseio de extirpar a Capital Federal. Não terão mecanismos para fazê-la voltar ao Rio de Janeiro, mas as poderosas canetas poderão estrangular Brasília e sufocar o sonho de um Brasil mais próspero, mais igual, com menos pobreza e mais dignidade humana. Ideais que moveram lideranças como Juscelino Kubitschek.

Te cuida, Brasília! Teus algozes estão logo ali, na Esplanada.