Vida de pequeno produtor rural artesanal não é fácil. Não se beneficia das regras da agricultura familiar e quase sempre são enquadrados nas mesmas regras dos grandes frigoríficos e laticínios. Regras criadas para simplificar a vida, na prática nada alteraram e o futuro de muitos, como o caso aqui relatado, é a derrocada empresarial. Rui para quem produz, ruim pra quem consome, péssimo para o país.

 

Por Chico Sant’Anna

Dizer que vida de pequeno produtor rural é uma dificuldade só, já virou lugar comum. O desempenho comercial de quem tira a riqueza da terra é ainda mais difícil se a produção rural for de pequeno porte, estiver localizada em Goiás e o mercado consumidor, em Brasília. Haja burocracia. Tratam pequenos produtores artesanais, como se fosse grandes indústria de laticínio ou frigorífica. É mais fácil colocar à venda nos mercados de Brasília um queijo feito no Tibete, do que um produzido na Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal (Ride-DF). Na prática, a Ride, que engloba 32 municípios goianos e mineiros, não existe. A fiscalização sanitária feita nos laticínios produzidos em Goiás, por exemplo, não tem valor no DF, e vice versa. As normas federais criadas para desburocratizar a vida dos pequenos, pouco ou nada alterou a burocracia. O produtor goiano que visa o mercado goiano precisa, então, recorrer à Fiscalização Federal e, para quem é pequeno, isso se torna quase que impossível, levando à morte muitos empreendimentos e empregos.

Atualmente, a Cabra Chic processa 300 litros de leite caprino, produzindo uma linha de queijos que inclui boursin, montanhês, sardo e meia cura, além da ricota e do frescal. Foto Divulgação.

Essa realidade acima pode ser personificada na efêmera trajetória de vida da Cabra Chic. Uma linha de produção de laticínios gourmet, a partir do leite de cabra, produzidos na área rural de Luziânia. A tecnologia empregada foi desenvolvida a partir de muitas pesquisas e estudos sobre as técnicas portuguesas, francesas e também do Nordeste brasileiro.

O rebanho anglonubiano – raça formada no século XIX, na Inglaterra, a partir do cruzamento de fêmeas inglesas com machos das raças, Jamunapari, Zaraibi e Chintral, oriundos da Índia, Nubia e França – cuja característica é a alta capacidade da produção de leite, tido pelos especialistas como mais saboroso.

O mercado para esse tipo de produto está em Brasília. Restaurantes, hotéis e consumidores individuais formam por aqui um circuito consumidor gourmet de maior potencial. Os queijos de cabra tem qualidade de substituir similares importados, contudo, têm que vir quase que clandestinos, tornando o negócio perigoso e pouco rentável.

Carta Testamento

Esta semana, o responsável pela Cabra Chic, Armando Rollemberg, enviou carta ao governador de Goiás, Ronaldo Caiado (Dem) e à ministra da Agricultura, Tereza Cristina Costa Dias (Dem). A carta poderia ser rotulada de carta testamento de um pequeno empreendedor rural. O ex-jornalista e hoje micro produtor rural comunica o fim de seu empreendimento face à burocracia estatal, decisão que vai implicar na demissão de quatro trabalhadores e na redução do rebanho caprino, de 200 para 20 cabeças.

A raça anglonubiana, formada no século XIX, na Inglaterra, a partir do cruzamento de fêmeas inglesas com machos das raças, Jamunapari, Zaraibi e Chintral, oriundos da Índia, Nubia e França – possui a alta capacidade da produção de leite, tido pelos especialistas como mais saboroso. Foto de Chico Sant’Anna.

Armando tenta se consolidar como produtor rural, há cerca de cinco anos. Atualmente, processa 300 litros de leite caprino, produzindo uma linha de queijos que inclui boursin, montanhês, sardo e meia cura, além da ricota e do frescal.

Há, ainda, doces, tais como ambrosia, cheescake, pudim e doce de leite, tudo a partir do leite de cabra. Seu mercado, além da “pedra” da Ceasa, são os restaurantes, centros culinários e consumidores individuais que fazem parte do circuito da alta gastronomia candanga.

Trazer sua produção para Brasília é uma aventura que se compara às ilicitudes do contrabando. Embora tente há anos o reconhecimento oficial de seu empreendimento, o simples registro no Estado de Goiás, não atende às exigências do DF. “Mesmo que obtenha o SIM ou o SIE, junto à Agrodefesa Goiana, não posso comercializar fora de Goiás. Teria que buscar o selo do Serviço de Inspeção Federal do Ministério da Agricultura – SIF ou a igualmente complicada autorização do Sistema Brasileiro de Inspeção de Produtos de Origem Animal – Sisb/Poa. As exigências são de tal monta absurdas que parecia ser eu um grande produtor de laticínios e não um produtor artesanal” – relata ele, na correspondência enviada às duas autoridades.

Essas dificuldades se contrastam tremendamente com as políticas adotadas em países como os da Europa, onde a produção artesanal, a chamada produção de “terroir”, é incentivada como diferencial para a conquista de mercados e receitas. Produtos alimentícios artesanais europeus são apreciados em todo o mundo, gerando inclusive grandes receitas internacionais. Não atoa, a Europa reluta em colocar a produção rural dentro do acordo Mercosul-União Europeia.

Contrabando

Além de queijos, a linha da Cabra Chic inclui doces, tais como ambrosia, cheescake, pudim e doce de leite, tudo a partir do leite de cabra. Foto Divulgação.

O responsável pela Cabra Chic ainda relembra um recente caso em que um queijo brasileiro, produzido artesanalmente na Serra da Canastra e que foi premiado na França, teve que sair clandestinamente do Brasil, escondido nas malas de seus produtores. Depois desse fatídico episódio, o Congresso Nacional aprovou a lei 13.680/18 que estabeleceu a “regulamentação simplificada e desburocratizada para a inspeção industrial e sanitária de pequenas agroindústrias artesanais de produtos embutidos de origem animal”. A lei criou, ainda, o Selo Arte estadual para permitir a comercialização em todo o País de produtos artesanais com origem animal – queijos, salsichas, linguiças, presuntos, mortadelas, salames e geleias. Segundo Rollemberg, contudo, “lamentavelmente, a alegria do Selo Arte durou pouco.”

“Ao longo dos últimos meses, as diversas regulamentações dessa lei, em menor ou maior medida, só tem contribuído para desnaturá-la, dificultando sobremaneira, a formalização ou o surgimento de pequenos empreendimentos de natureza artesanal. Falo com experiência – e a sofrência – da própria causa” – escreve ele.

Em relação a Goiás – fortalecendo o entendimento de que tudo não passa de simples burocracia –, Armando Rollemberg relata que nunca recebeu uma inspeção presencial dos fiscais goianos. Todas as exigências foram feitas à distância, por e-mail ou por telefone. “Ninguém se dispôs a verificar (in loco) o capricho e o rigor sanitário que sempre praticamos”.

“Face às dificuldades enfrentadas para a formalização, mesmo com o advento do Selo Arte, decidi simplesmente fechar minha queijaria, colocar à venda os equipamentos, reduzir drasticamente o meu rebanho de cabras anglonubianas (de 200 para 20 animais), demitir quatro empregados – sendo dois com quase dez anos de casa. A Agrodefesa me derrotou, me jogou na lona, inviabilizou o meu negócio. Descobri que sonhei o sonho errado” – finaliza ele, enviado uma série de sugestões que os governos poderiam acatar para a vida de outros produtores.

Confira no link abaixo a íntegra da carta enviada ao governador de Goiás, Ronaldo Caiado, e à ministra da Agricultura, Tereza Cristina Costa Dias.

Correspondência da Cabra Chic ao Governo de Goiás e ao Ministério da Agricultura

Quanto à Cabra Chic, essa vai ficar na memória daqueles que tiveram a oportunidade de saborear as delicias produzidas no Entorno do DF.