Especialistas em Saúde e em Comunicação criticam campanha publicitária lançada pelo GDF em que nenhum dos protagonistas aparece portando máscaras. O mau exemplo cívico e sanitário e a possibilidade de transmitir ideia falsa de normalidade são os equívocos apontados na propaganda.

Por Chico Sant’Anna

Imagine uma propaganda governamental onde os protagonistas dirigem um carro em alta velocidade, desrespeitam as normas de trânsito, não usam cinto de segurança e crianças pequenas estão a bordo, no banco da frente, sem proteção das cadeirinhas obrigatórias. Inadmissível, não é? Pois o Governo do Distrito Federal colocou no ar uma campanha sobre as obras de urbanização de Vicente Pires em que todas as pessoas que nela aparecem não respeitam as normas legais de prevenção à Covid-19, notadamente sem usar máscaras protetoras.

A propaganda vai ao ar no momento em que o Distrito Federal registra 355.327 casos de Covid-19, sendo 6.772 em Vicente Pires, onde 142 moradores da cidade vieram a falecer vítima da covid-19. Em todo o DF, onde há uma enorme fila de espera por leitos de UTI, 6.621 óbitos foram registrados até o dia 8 de abril.

É bom lembrar que além de norma federal determinando o uso de máscaras, o governador Ibaneis Rocha, em março de 2020, editou o decreto nº 40831 que, logo no seu primeiro artigo, estabelece:

“Fica determinada a obrigatoriedade da utilização de máscaras de proteção facial, conforme orientações da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal, em todos os espaços públicos, vias públicas, equipamentos de transporte público coletivo, estabelecimentos comerciais, industriais e de serviços e nas áreas de uso comum dos condomínios residenciais e comerciais, no âmbito do Distrito Federal, sem prejuízo das recomendações de isolamento social e daquelas expedidas pelas autoridades sanitárias.”

A secretaria de Comunicação do GDF deve desconhecer a norma, pois deixou passar essa campanha, que pelo nível de produção, demonstra não ter sido barata. Verbas publicitárias, contudo, não devem ser a maior preocupação da Secom-DF, uma vez que foram alocados R$ 160 milhões para campanhas publicitárias desse ano. A quantia é 4,4 vezes maior do que foi efetivamente gasto em 2020. Na justificativa para o dispêndio de tanto dinheiro – com esse orçamento seria possível fazer chegar o metrô até o Setor O da Ceilândia – o GDF alega que a Pandemia da Covid exigirá mais campanhas de esclarecimentos à população.

Sobre o orçamento de propaganda do GDF e da CLDF, leia:

Cenas da publicidade do GDF, protagonistas não usam máscaras, demonstrando respeito à própria legislação sanitária do Distrito Federal. Reprodução de vídeo.

Esclarecimento?

No vídeo produzido para enaltecer as obras de urbanização na cidade de Vicente Pires são exibidas cinco pessoas, supostamente moradores da cidade. Três delas aparecem concedendo depoimentos e duas outras são exibidas caminhando sobre as vias alvo das melhorias urbanas.

Nenhuma delas aparece com máscara de prevenção contra a Covid. A máscara não aparece nem mesmo como um adereço que tenha sido retirado momentaneamente para a gravação. Na edição, ao final do vídeo de cerca de um minuto, aparece em rapidíssimos segundos uma pequena cartela recomendando o uso de máscaras, não respeitado na gravação.

“Qual a mensagem que o morador do DF recebe? A de que usa máscara quem quer, mesmo que esteja submetido a um decreto do governo do DF? Quem sabe subliminarmente a equipe de comunicação esteja fazendo o que o governador realmente pensa, ele que é aliado de um governo federal negacionista” – questiona o Sociólogo e Mestre em Comunicação, Carlos Augusto Setti. Pelas imagens veiculadas na TV, no lugar de esclarecer, a publicidade do GDF parece contribuir para confundir. Afinal: é ou não é para se usar máscara? Se é, porque os atores do GDF não respeitam as regras?

“O que é pior ? Um governo federal que se omitiu vergonhosamente de lançar uma campanha nacional estimulando a população a se vacinar e a tomar as medidas de proteção à saúde nesta pandemia ? Ou um governo do Distrito Federal que envia mensagem dupla sobre os mesmos cuidados ? Quem respondeu que os dois são piores acertou” – afirma Setti..

“Em Comunicação, não só a mensagem explícita comunica. Conteúdos implícitos, ainda que por vezes imperceptíveis objetivamente, são percebidos, reconhecidos e terminam introjetados no imaginário. Como na Educação, se faz muito mais pelo exemplo, pois induz a comportamentos análogos aos que exibe, tudo o que é visto numa mensagem publicitária resulta em mudança de comportamento da audiência” – avalia o professor de Comunicação da Universidade de Brasília, Paulo José Cunha, detentor de uma longa carreira profissional na televisão e também na execução de campanhas, inclusive para a área de Saúde.

Não é assim, contudo, que pensa o jornalista Wellington Moraes, secretário de Comunicação do DF, com larga experiência no cargo, pois já atuou no mesmo posto em outros governos. Para ele, não há problemas com a imagem projetada à opinião pública, como alertado pelo professor Paulo José Cunha. Comentou apenas que “na gravação, todas as pessoas estavam isoladas; ao ar livre, em ambiente aberto e respeitando o protocolo de segurança”.

Não é o que avalia o especialista em Marketing, José Noguchi, em atuação no setor há mais de 40 anos. “Com essa propaganda do saneamento de Vicente Pires, os gestores públicos, comunicadores e representantes da comunidade mostram não ter consciência do que seja responsabilidade social em meio a uma pandemia que já dura 16 meses e já matou mais de 6 mil pessoas no DF. A vaidade e o exibicionismo fez com que ninguém se mostrasse preocupado com a pandemia. A falta do uso da máscara é a prova.”

“No atual contexto pandêmico, uma campanha que não valoriza o uso de máscaras e das etiquetas sanitárias exigidas para o momento, demonstra uma comunicação descomprometida com a sociedade, com a ética e com as dores de uma população extremamente abatida pelas milhares de mortes que nos assolam” – professora Valéria Mendonça.

É exatamente ai que mora o perigo. Nem todos os brasilienses que vierem a assistir à peça publicitária estarão em mesmas condições de segurança no seu dia-a-dia.

É como alegar que na hipotética campanha, que citamos no início desse texto, onde o motorista não usa cinto de segurança e crianças estão soltas no banco da frente, havia-se respeitado às normas de segurança, pois não se expôs os atores a qualquer risco. Mas a audiência não vê isso.

Em um anúncio de TV, as imagens, os efeitos sonoros, as trucagens, tudo se comunica e passa elementos aos espectadores, às vezes até de forma subliminar.

“As campanhas publicitárias refletem, para além da instituição, os valores atribuídos às imagens que se veicula e as mensagens atribuídas a elas. No atual contexto pandêmico, uma campanha que não valoriza o uso de máscaras e das etiquetas sanitárias exigidas para o momento, demonstra uma comunicação descomprometida com a sociedade, com a ética e com as dores de uma população extremamente abatida pelas milhares de mortes que nos assolam. No âmbito da Comunicação em Saúde, orienta-se a exemplaridade como princípio fundamental para alcançarmos a consciência sanitária” – avalia a coordenadora do Laboratório de Educação, Informação e Comunicação em Saúde da UnB, professora Valéria Mendonça. “Não faltam argumentos da inadequação do momento e nem da proposta, uma vez que até o presidente anda aparecendo de mascára em eventos públicos” – salienta Waner Rizzo, professor de Publicidade na UnB.

“No que se refere às autoridades públicas, elas não podem ser coniventes com procedimentos que põe em risco a vida de pessoas e da coletividade, conduta classificável como negligência e imprudência” – alerta o professor Luiz Martins da Silva.

Doutor em Sociologia e também professor de Comunicação da UnB, Luiz Martins da Silva, recorda que a noção de responsabilidade e de humanidade deve estar sendo difundida por todos e, sobretudo, pelas autoridades que veiculam propagandas de “realizações”, em que os protagonistas das mensagens institucionais aparecem louvando as benfeitorias, mas, sem máscaras, tanto nos vídeos em que referem o andamento das obras, quanto, agora, filmes publicitários governamentais.

“Muita gente tem-se manifestado no sentido de que os protocolos sanitários de enfrentamento do Covid-19 não são obrigatórios, pois não haveria lei obrigando às pessoas a, por exemplo, usarem máscaras. Pelo menos no que se refere às autoridades públicas, elas não podem ser coniventes com procedimentos que põe em risco a vida de pessoas e da coletividade, conduta classificável como negligência e imprudência.”

Doutora em Saúde Pública e professora da UnB, Fátima Sousa, explica que é dever do Estado orientar a população e “uma campanha dessa natureza é um desserviço, a formação da consciência sanitária e contrária às regras da Organização Mundial de Saúde. Essas imagens ignoram as dores das milhares de famílias que perderam seus entes.

Uma peça publicitária exibida em plena pandemia contendo imagens que induzem à normalização de um comportamento como o não uso da máscara (uma das providências mais eficazes contra disseminação do vírus) funciona a favor da doença – salienta Paulo José Cunha.

“Pelos efeitos devastadores que pode acarretar pelo efeito do exemplo, como acima mencionamos, uma peça publicitária como essa, por contribuir, mesmo que involuntariamente à perda de vidas humanas, é condenável sob todos os aspectos” – professor Paulo José Cunha.

Nessa mesma linha, avalia o conselheiro de Saúde do DF, Rubens Bias: “é lamentável que o governo faça propaganda com pessoas sem máscaras, no momento de maior número de mortos diários por Covid no DF. Isso passa um recado errado de que as pessoas não precisam mais se cuidar. Todos os esforços deveriam estar voltados para garantir a vida e a saúde das pessoas.”

Retirada da campanha do ar

Para o professor Paulo José Cunha, “não foi um ato apenas infeliz da secretaria de comunicação do GDF a veiculação de uma peça em que todos os atores estão sem máscara. Pelos efeitos devastadores que pode acarretar pelo efeito do exemplo, como acima mencionamos, uma peça publicitária como essa, por contribuir, mesmo que involuntariamente à perda de vidas humanas, é condenável sob todos os aspectos.” De forma mais explicita, a professora Fátima Sousa entende que “em defesa da saúde coletiva, essa campanha precisa sair do ar, imediatamente.”

E o professor Luiz Martins da Silva questiona: “a vida de um filho, irmão, pai, mãe, avós… tem um pertencimento mais amplo. Mesmo uma árvore tem o sentido da floresta. Por que nós, seres éticos e corresponsáveis não podemos pensar e agir pensando nos outros? Ainda mais sendo autoridades, legitimadas publicamente e agindo com o dinheiro público?