Pelo projeto, as glebas de número 2 e 3, que representam quase a metade da unidade de conservação (44%), deixarão de fazer parte da Flona. São áreas onde a grilagem e a expansão urbana selvagem tomaram conta. A área 2 está na Estrutural, nas proximidades das Chácaras Santa Luzia, onde a justiça já determinou a desocupação de uma área de uma franja de 300 metros a contar dos limites do Parque Nacional de Brasília. Juristas avaliam que projeto é inconstitucional.

Por Chico Sant’Anna

O sentimento é de que a grilagem voltou a ganhar e que a máxima “invade que depois regulariza” mais uma vez se fez realidade. O Senado Federal aprovou, nesta quinta-feira (18/11), o projeto de Lei 4.379/2020, que promove alterações na Floresta Nacional de Brasília (Flona). O formato e tamanho da Flona vão mudar, na prática, diminuir. De acordo com o texto, a Floresta perderá 4 mil hectares, para fins de regularização fundiária urbana. De outro lado, cerca de 3,7 mil hectares serão acrescentados à Floresta Nacional de Brasília. Além disso, a partir da ampliação e transformação da Reserva Biológica de Contagem – hoje com 3.426 hectares -, será criado um novo parque nacional, o da Chapada da Contagem. A atual reserva deve ganhar da Companhia Imobiliária de Brasília (Terracap), uma área de 2.116 hectares permitindo a constituição de uma parque de 5.542 hectares.

O projeto também reduz a área do Parque Nacional de Brasília ao retirar do seu interior o trecho da Estrada Parque Contorno (DF-001), que liga Brazlândia ao lado Norte do Distrito Federal. Esse trecho, até hoje não asfaltado por estar dentro de uma unidade de conservação, poderá se transformar num corredor integrando a Belém-Brasília (via Padre Bernardo) a Formosa e mesmo a cidades da Bahia. Sempre houve questionamentos que um maior trafego de veículos nesse trecho, em especial de caminhões carregados de produtos agrícolas, poderia afetar a fauna da região.

O projeto é de autoria do senador Izalci Lucas (PSDB-DF) e foi relatado pela senadora Leila do Vôlei (Cidadania-DF). Leila disse que seu relatório teve o apoio de um grupo de trabalho com representantes do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio), responsável pela Flona, e do Instituto Brasília Ambiental (Ibram). Entretanto, outro projeto de igual teor (o 2.776/20) foi aprovado em setembro passado, na Comissão de Meio-Ambiente da Câmara dos Deputados. A similitude dos dois projetos sugere que, na prática, eles foram elaborados por algum agente externo ao Congresso Nacional, que buscou padrinhos para a ideia tanto no Senado Federal, quanto na Câmara. O projeto analisado pelos deputados leva a assinatura da deputada licenciada Flávia Arruda (PL-DF).

Pelo projeto, as glebas de número 2 e 3 (vide mapa), que representam quase a metade da unidade de conservação (44%), deixarão de fazer parte da Flona.

Grilagem

Pelo projeto, as glebas de número 2 e 3, que representam quase a metade da unidade de conservação (44%), deixarão de fazer parte da Flona.

A venda desses lotes é bastante lucrativa para a grilagem. Em 19/11/2021, dia em que esse texto foi redigido, um lote de 400 metros quadros, sobre terra pública, e dotado de um barraco de alvenaria era vendido na internet por R$110 mil.

A redução dos 4 mil hectares se dará exatamente com o fim dessas duas poligonais. São áreas onde a grilagem e a expansão urbana selvagem tomaram conta.

A área 2 está na Estrutural, nas proximidades das Chácaras Santa Luzia, onde a justiça já determinou a desocupação de uma área de uma franja de 300 metros a contar dos limites do Parque Nacional de Brasília.

A ação de grileiros é uma constante nessa região. No final do ano passado, a Polícia Civil desarticulou duas organizações criminosas voltadas para o parcelamento irregular de terras na Colônia Agrícola 26 de Setembro. Além de vender terras públicas, os grileiros as comercializavam em duplicidade. Os grileiros tinham ligações ao crime organizado na Ceilândia, segundo a Polícia Civil. Na região, ações de derrubada de ocupações irregulares são constantes. Em setembro, por ordem da Justiça, o DFLegal derrubou 30 edificações. Mesmo assim, a ousadia e impeto dos grileiros não se arrefeceu.

Ações de derrubada de ocupações irregulares são constantes. Em setembro, por ordem da Justiça, o DFLegal derrubou 30 edificações. Mesmo assim, a ousadia e impeto dos grileiros não se arrefeceram. Foto: Renato Alves/Agência Brasília

A venda desses lotes é bastante lucrativa para a grilagem. Em 19/11/2021, dia em que esse texto foi redigido, um lote de 400 metros quadros, sobre terra pública, e dotado de um barraco de alvenaria era vendido na internet por R$110 mil.

A área 3 foi ocupada irregularmente e o maior núcleo habitacional é a Colônia 26 de Setembro. O GDF estima em 40 mil moradores no local. Trata-se do mesmo local em que o então candidato a governador, Ibaneis Rocha (MDB) prometeu, durante a campanha de 2018, construir com recursos próprios casas que haviam sido derrubadas pela Agefis. A mensagem que o GDF passa aos moradores é confusa. Se ações de demolições existiram por um lado, de outro, como o ocorrido há poucos dias, quando o vice-governador Paco Brito (Avante), esteve no local; urbanização e melhorias foram prometidas em uma área irregular, mesmo antes da área ser desafetada legalmente.

Num período pré-eleitoral parece que políticos de diferentes partidos: PSDB, Cidadania, PL, MDB, Avante tentam ficar bem na foto e conquistar uma fatia do eleitorado, mesmo que o preço seja a capacidade hídrica do Distrito Federal.

Para o senador Izalci Lucas, “o projeto ficou muito bom”. “Criamos o Parque da Contagem. A 26 de setembro foi de fato ocupada de forma irregular. Lamentavelmente, esses governos que passaram e principalmente o atual perderam o controle sobre ela. Espero que a lei facilite a regularização e na sequência fiscalizem e ofereçam opções para as pessoas morarem de forma planejada” – disse o parlamentar ao jornalista Orlando Pontes.

Inconstitucionalidade

Nos corredores do Tribunal de Justiça do DF a visão é outra: A incosntitucionalidade, segundo juristas, residiria no fato de que o projeto “ofende o princípio da vedação ao retrocesso”, também concebido como princípio clicquet. “Uma proteção ambiental não pode ser retirada; só incrementada. A Constituição Federal incumbe aos poderes públicos o dever de preservar os espaços especialmente vocacionados para fins ecológicos, principalmente unidades de conservação (Art.225, par. 1o, inciso – salvo engano – VII). A norma é também ratificada na Lei Orgânica do DF, onde também se consagra, como diretriz fundamental da politica urbana do DF, a primazia do interesse publico sobre o particular. Daí que a tentativa de se alterar a destinação de tais espaços apenas para atender interesses de particulares pode inclusive, no limite, representar improbidade administrativa” – analisa um jurista que preferiu não se identificar.

O volume d’água dos mananciais preservados pela Flona representa o consumo de 65% da população do Distrito Federal, segundo o ICMBio. Ali estão espécies da flora e da fauna ameaçadas de extinção, como o palmito-juçara, o pássaro papa-moscas-do-campo e o tatu-canastra. Trechos da unidade de conservação abrigam trilhas para caminhada e circuitos de mountain bike abertos ao público.

Preservar recursos hídricos

Segundo informe da Câmara dos Deputados, com as alterações, a Floresta Nacional será reduzida de 9.345 hectares para 5.640 hectares, sendo a Área 1 ampliada para 3.753 hectares, e a Área 4 reduzida para 1.887 hectares. As áreas 2 e 3 deixarão de fazer parte da unidade de conservação, como forma de resolver o conflito fundiário lá existente. Provavelmente, a União repassará ao GDF a gestão da regularização dos lotes.

O Fórum das Ongs Ambientalistas do Distrito Federal apoia essa solução. “É uma permuta: a gente perde para ganhar” – sustenta a porta-voz do coletivo, Mara Moscoso. Segundo ela, a Flona tem uma história bem complexa e que só foi criada por conta de uma ação civil pública. Em meados da década de 1990, os ambientalistas já queriam que o Ibama assumisse a proteção daquela área, “justamente por conta da ameaça de grilagem”. Mara Moscoso disse que o Ibama tardou a agir e que quando o fez as duas glebas já estavam bem ocupadas e que só cresceu de lá para cá, diante da omissão do Estado em proteger a Flona. “Nesse momento, é melhor que a gente use mais a razão e menos a emoção. As duas áreas estão bastante ocupadas, daí surgiu a ideia de compensar com a ampliação da gleba 1 e da transformação da Rebio da Contagem num Parque Nacional. Tudo numa operação casada. Assim garante-se a proteção daquela área e forma-se uma proteção ao Parque Nacional de Brasília. A gente perde de um lado, mas ganha do outro” – avalia ela.

Criada em 1999, por meio de decreto do presidente Fernando Henrique Cardoso , a Flona tinha por missão promover o manejo e uso sustentável dos recursos naturais renováveis, a manutenção e proteção dos recursos hídricos e da biodiversidade do Cerrado. Na atualidade, a Floresta Nacional de Brasília atua como importante proteção tanto para os cursos d’água que desaguam na barragem do Descoberto, quanto na de Santa Maria. Segundo o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMbio, as ocupações irregulares nas áreas 2 e 3 não possuem saneamento básico e a coleta de lixo praticamente não existe, colocando em risco de contaminação os mananciais existentes no local.

O volume d’água dos mananciais por ela preservados representa o consumo de 65% da população do Distrito Federal, segundo o ICMBio. Ali estão espécies da flora e da fauna ameaçadas de extinção, como o palmito-juçara, o pássaro papa-moscas-do-campo e o tatu-canastra. Trechos da unidade de conservação abrigam trilhas para caminhada e circuitos de mountain bike abertos ao público.

Lobby antigo

A Flona é composta de quatro glebas distintas, localizadas nas regiões administrativas de Taguatinga, Brazlândia e Estrutural. Ao todo, são aproximadamente 9.346 hectares: Área 1, com 3.353 hectares (36% do total); Área 2, com 996 hectares (11%); Área 3, com 3.071 hectares (33%); e Área 4, com 1.926 hectares (21%).

Em 2018, um marco jurídico semelhante propondo a extinção das Flonas 2 e 3 chegou a ser aprovado numa comissão mista do Congresso Nacional. À época, mudanças iguais as agora aprovadas foram inseridas no parecer do senador Dário Berger (MDB-SC) à MP 853, que tratava especificamente de imóveis do INSS.

Tramitação
O projeto do Senado vai agora para a Câmara dos Deputados e deve ser acoplado ao da Cãmara que tramita em caráter conclusivo. mas que ainda precisa ser analisado pelas comissões de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços; e de Constituição e Justiça e de Cidadania, antes de ir a plenário. Se aprovado sem alterações da versão do Senado, ele seguirá direto para a sanção presidencial.