Toda essa riqueza é sabotada pela grande latrina em que ele foi transformado. Estudos apontam que nem toda água que sai da Estação de Tratamento de Esgoto Melchior é 100% tratada, sem contar os despejos clandestinos de esgoto e os chamados acidentes.

 

Por Chico Sant’Anna

 

Na semana em que se comemora o dia Mundial das Águas, um rio agoniza e pede socorro na Capital Federal. Com pouco mais de 60 anos de existência, Brasília caminha para ter seu próprio Tietê. Um rio morto, cheio de poluição, com água imprestável para o consumo humano e suspeita para ser utilizada na agricultura. Estamos falando do Rio Melchior, que demarca a divisão geográfica entres as regiões administrativas de Ceilândia e Samambaia e é um dos afluentes do Rio Descoberto.

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Provavelmente, desconhecido da maioria dos três milhões de habitantes do Distrito Federal, o rio segue rumo a Goiás, ja no leito do Descoberto, essas águas contaminadas por esgoto, chorume e sabe se lá mais o que é utilizada na produção de alimentos que abastecem o brasiliense e também a população goiana.

O Melchior é um belo Rio, em seus 25 km há corredeiras e cachoeiras. Poderia ter seu uso potencializado para o lazer e turismo, ainda mais por que está próximo a aglomerados urbanos. Foto de Alzirenio Carvalho

Também conhecido como Rio Belchior, o leito desse rio se transformou, desde 1965, num grande escoadouro de esgoto de Taguatinga e, posteriormente, de Ceilândia e Samambaia, o que piorou ainda mais a qualidade da água, anos após ano. Hoje, rejeitos de Águas Claras e Vicente Pires também são encaminhados ao Melchior que em breve irá passar a receber ainda o esgoto das quadras de 1 a 5 do Park Way e, quiçá, das Arniqueiras.

Veja aqui corredeiras do Melchior em vídeos populares produzidos por seus defensores
Vídeo enviado por Alzirenio Carvalho

 

O Melchior é um belo Rio, em seus 25 km há corredeiras e cachoeiras. Poderia ter seu uso potencializado para o lazer e turismo, ainda mais por estar próximo a aglomerados urbanos, cujas populações são carentes em lazer e entretenimento. Ele nasce na Área de Relevante Interesse Ecológico JK. Na verdade, é formado a partir da junção do Ribeirão Taguatinga com o Córrego do Valo e o Córrego Gatumé, e ao longo de todo o seu percurso recebe, em seu leito, contribuições de inúmeras nascentes e pequenos córregos. Além dos três cursos d’água citados anteriormente, são pelo menos quinze afluentes, provenientes, especialmente, da Ceilândia e Samambaia.

Em dois vídeos populares, as belezas das cachoeiras do Melchior
Vídeos enviados por Alzirenio Carvalho

Os córregos mais importantes vindo da Ceilândia são: Grotão, do Meio, Embira Branco, Guariroba, Gerival, Arrozal, Buriti Podre, Córrego Areias e o Barreiro, além do Ribeirão Salta Fogo. Já de Samambaia, os destaques são o córrego Raizama, o Barra, Cutia, Toca do Lobo e o Cipó.

Vazamentos no sistema de tratamento de esgoto da Caesb, chorume do Aterro sanitário e lançamentos clandestinos de efluentes matam a cada dia um pouco da saúde do Melchior. Foto de Newton Vieira.

Quando chega no Descoberto, o Melchior possui uma vazão de estimada em 709 litros por segundo. Essa é, mais ou menos, a mesma quantidade d’água que a Caesb retira do Lago Paranoá, com uma estação criada emergencialmente, por ocasião da crise hídrica que o Distrito Federal, enfrentou. Entretanto, essa água está longe de ser aproveitada no abastecimento de quadrante tão populoso do Distrito Federal, quanto o é a Ceilândia, Samambaia, Sol Nascente e Por do Sol.

Toda essa riqueza é sabotada pela grande latrina em que ele foi transformado. Estudos apontam que nem toda água que sai da Estação de Tratamento de Esgoto Melchior é 100% tratada, sem contar os despejos clandestinos de esgoto e os chamados acidentes.

Em vídeos populares, moradores protestam contra a situação do Melchior
Vídeo enviado por Newton Vieira

Em janeiro de 2019, relatório do Serviço de Limpeza Urbana (SLU) do Distrito Federal apontou vazamento de chorume proveniente do Aterro Sanitário de Brasília (ASB), localizado às margens da DF-080, em Samambaia. Foram registrados dois vazamentos do líquido, que por meio da rede de águas pluviais atingiu o córrego Melchior. Em janeiro de 2020, uma grande mancha de espuma foi flagrada nas águas do rio, nas proximidades do Aterro Sanitário de Brasília, segundo documentou à época o portal Metrópoles.

Em janeiro de 2020, o portal Metrópoles documentou uma grande mancha de espuma sobre as águas do Rio Melchior, nas proximidades do Aterro Sanitário de Brasília. Foto de Michael Melo/Metrópoles.

A Caesb informa que o rio recebe os efluentes (esgotos tratados) de duas estações de tratamento, que “apresentam elevada eficiência na remoção de matéria orgânica”. Entretanto, é a própria empresa que atesta que o sistema não é tão seguro.

Em resposta a esse blog, ela informa que em fevereiro desse ano, o emissário que conduz os efluentes à Estação de Tratamento de Esgoto -ETE Melchior sofreu dois rompimentos. Eles foram reparados e, novamente, a rede voltou a se romper, em decorrência do volume excessivo de chuvas.

“A rede que conduz o esgoto foi projetada para ter uma durabilidade de aproximadamente 30 anos, porém, por conta do uso indevido da bacia, o esgoto apresenta alta concentração de terra e areia, muito mais do que qualquer outra região do Distrito Federal. Esse material acabou provocando o desgaste prematuro da tubulação” – informa a Caesb.

Por vários dias, o esgoto foi lançado no leito do Melchior, até que uma “rota alternativa” fosse edificada. Somente no sábado, 20/03, dois dias antes do dia Mundial da Água, o esgoto não foi mais lançado no Melchior, segundo a empresa.

A Caesb informa que seus levantamentos técnicos, ao contrário do que afirmam defensores do Melchior, “apresenta-se frequentemente com características de qualidade da água de acordo com seu enquadramento”. Esse enquadramento, contudo – classe 4 -, definido pelo Conselho de Recursos Hídricos do DF (CRH/DF), através da resolução nº 002/2014, diz que o Melchior pelo seu enquadramento deve ser “destinado à navegação e harmonia paisagística, não sendo adequado para o uso humano.” A Caesb deixou de dizer que ssa mesma categoria 4 inclui que é destinado “ aos usos menos exigentes”.

É no mínimo curioso que um rio cheio de corredeiras e cachoeiras e de leito não muito profundo seja classificado à navegação. “Uso menos exigentes” seria uma licença para matar o rio? Jogar tudo lá dentro, sem problemas? Foto de Alzirenio Carvalho

Em outras palavras, parece no mínimo curiosa essa, digamos, desclassificação desse importante curso d’água pelo Conselho de Recursos Hídricos do DF.

É ainda curioso que um rio cheio de corredeiras e cachoeiras e de leito não muito profundo seja classificado de destinado à navegação.  Só se for de rafting, o que já seria uma utilização bem mais nobre.

E o quer quer dizer “Uso menos exigentes”? Seria uma licença para matar o rio? Jogar tudo lá dentro, sem problemas?

Apesar de todos esses “acidentes” no sistema de captação e tratamento de esgoto, a empresa não se sente responsável pela situação atual do Melchior. “Reforçamos que os lançamentos indevidos de esgotos em redes de águas pluviais ou vice-versa, bem como de lixo e demais resíduos sólidos diretamente nos corpos d’água da região, são os principais causadores de danos ambientais, devendo ser evitados pela população… e que o chorume proveniente do aterro sanitário não é de responsabilidade da Empresa e, sim do SLU”.

Estudo do Instituto Brasília Ambiental – Ibram atesta que o Melchior recebe cotidianamente dois grandes picos de vazão: o maior entre às 14h00 e 16h00, e o segundo, entre as 22h00 e 24h00. “Tal comportamento – diz o documento – é bastante semelhante ao comportamento de um hidrograma (gráfico que mostra o comportamento da vazão de líquidos) típico de esgoto, com valores de vazões máximas e mínimas bastante distintos e em horários característicos, e observados nos esgotos afluentes à ETE Samambaia”.

Vídeo popular mostra o lançamento de esgoto no Melchior
Vídeo enviado por Alzirenio Carvalho

Nesse jogo de empurra dos diversos órgãos e empresas do GDF, ou por ele contratadas, ao Melchior só resta o trabalho quase que quixoteano de jovens e moradores, em especial de Samambaia e Ceilândia pela proteção e salvação do Melchior. Além de manterem uma vigilância permanente, há iniciativas de reflorestamento das margens do rio, evitando que ele também seja vítima do assoreamento.

Por conta própria, moradores reflorestam as margens do Melchior e se propõem a constituir o Bosque dos Repórteres
Vídeo enviado por Newton Vieira

Nesse jogo de empurra dos diversos órgãos e empresas do GDF, ou por ele contratadas, ao Melchior só resta o trabalho quase que quixoteano de jovens e moradores, em especial, de Samambaia e Ceilândia pela proteção e salvação do Melchior. Além de manterem uma vigilância permanente, há iniciativas de reflorestamento das margens do rio, evitando que ele também seja vítima do assoreamento.

Numa unidade da federação tão frágil quanto aos recursos hídricos, seria importante as autoridades olharem com menos desdém o futuro do Melchior. As águas de março, como escreveu o poeta Tom Jobim e cantou o xará do rio, Belchior; já estão indo embora. Além de pau, pedra, do resto de toco, caco de vidro, pra evitar que esse seja o fim do caminho para o Melchior, está na hora de agir. De se dar mais importância a sobrevivência desse curso d’água, de se utilizar técnicas mais modernas e menos poluentes no tratamento dos esgotos e da população em geral lembrar que nenhum rio deve ser visto como latrina da sociedade.

Isso ocorrendo,

As águas agradecem,
Brasília agradece,
O Planeta agradece.