Alterar as características do Plano Piloto é ferir de morte o diferenciado conceito urbanístico de Lucio Costa e, por isso, reconhecido pela Unesco. Acabar com a diferenciação dos setores é dotar Brasília de formatos urbanos iguais a qualquer outra metrópole, arriscando-se, inclusive, a perder a condição de Patrimônio da Humanidade, conferida pela Unesco.


Por Chico Sant’Anna (*), publicado originalmente no semanário Brasília Capital

Permitir residências no Setor Comercial Sul, área gregária de Brasília, tem o mesmo peso de agressão ao projeto de Lúcio Costa que teriam a construção de um shopping no canteiro central da Esplanada dos Ministérios, ou a instalação de estabelecimentos industriais no interior das superquadras.
O Projeto de Lúcio Costa para o Plano Piloto de Brasília vai muito mais além do que os dois eixos se entrecruzando e que formam as zonas residencial e institucional. Baseado em características da moderna arquitetura de então, o urbanista desenhou uma cidade dotada de quatro escalas urbanas capazes de oferecem condições diferenciadas para que em seu cotidiano o morador de Brasília pudesse desfrutar a diversidade da cidade.
Assim, como ele próprio afirma no documento Brasília 57-85, foram definidas a escalas:

  • Residencial – constituídas de superquadras voltadas ao convívio das pessoas, notadamente, em torno das unidades de vizinhanças onde existiriam escolas, equipamentos de lazer, comércio local;
  • Monumental: no Eixo Monumental, da Praça dos Três Poderes até a Praça do Buriti. Palco para o de mais importante houvesse na moderna arquitetura brasileira, que fosse despojada e de pureza plástica. “A parte da cidade imaginada para ser superlativa, magnífica” – como definiu Clarice Lispector, ao escrever Brasília;
  • Gregária: com a intenção de agregar os seres humanos, o local do convívio. Vai da Plataforma Rodoviária, onde estão os setores de diversão Sul e Norte, aos setores comerciais, bancários, hoteleiros, médico-hospitalares, de autarquias e de rádio e TV;
  • Bucólica: a que dá a condição de cidade parque à Brasília, com suas grandes áreas verdes, com o horizonte do céu desimpedido, áreas livres destinadas à preservação paisagística e ao lazer.

Alterar essas características é ferir de morte o diferenciado conceito urbanístico de Lucio Costa e, por isso, reconhecido pela Unesco. Acabar com a diferenciação dos setores é dotar Brasília de formatos urbanos iguais a qualquer outra metrópole, arriscando-se, inclusive, a perder a condição de Patrimônio da Humanidade, conferida pela Unesco.

A introdução de residências foi tema de aula-debate com o editor desse blog na pós-graduação pós-graduação de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília, promovida pelo laboratório LaSUS-FAU-UnB. Confira abaixo o vídeo com o debate.

Tombamento
Toda a concepção urbanística do Plano Piloto foi preservada no Decreto n° 10.829, de 1987, marco jurídico exigido como pré-requisito pela Unesco para outorgar tão honrosa condição de Patrimônio Cultural da Humanidade, assim como o é Ouro Preto, ou as belezas de Persépolis, no Irã, e Acrópole de Atenas, na Grécia.

Sobre as mudanças urbanísticas no SCS, leia também:

Para proteger Brasília dos interesses da especulação imobiliária, José Aparecido, primeiro governador do DF – após 30 anos de ditadura militar e a uma interinidade de 30 dias de Ronaldo Costa Couto – idealizou o tombamento do projeto de Lúcio Costa para a Capital Federal. Como poucos governantes – relata seu secretário de governo Guy de Almeida, em um dos capítulos do livro, José Aparecido de Oliveira: O Melhor Mineiro do Mundo, organizado pelo jornalista Petrônio Gonçalves -, soube vislumbrar que se não houvesse mudança de rumos, a Capital Federal, símbolo da modernidade urbanística, logo iria perder seus diferenciais e tornar-se-ia uma metrópole como qualquer outra. O tombamento foi um feito histórico. Nunca antes na história da humanidade uma cidade fora tombada pela Unesco no mesmo século de sua criação.

Sobre o tombamento de Brasília, leia aqui:

É importante salientar que o que foi considerado com Patrimônio Histórico da Humanidade não foram exatamente as edificações, muitas de autoria do renomado Oscar Niemeyer. O que foi “tombado” mundialmente foi o conceito urbanístico da cidade, idealizado por Lucio Costa e que venceu um certame internacional, no qual concorreram 22 projetos de renomados arquitetos.

Alterações afoitas

O pior é que todas as alterações, ora propostas pelo GDF, são apresentada de afogadilho e condensadas em um único artigo de um projeto de lei que tem por finalidade maior dinamizar o cotidiano do SCS. A Constituição e a LODF são claras em definir que mudanças urbanísticas devem se dar por meio do Plano Diretor de Ordenamento Territorial (PDOT). No caso especifico da área tombada, o caminho é o Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCUB). Portanto, introduziram um jabuti – no jargão politiquês quando se refere a aparição ~inadequada de um dispositivo legal em um projeto de lei ou em uma medida provisória – que altera o Plano Piloto de Lucio Costa em um projeto de lei que é juridicamente inadequado.

Leia também:

A quem interessariam mudanças tão abruptas?
A insistência em fazer tal alteração e nesse afogadilho levanta a suspeição de que as novas regras urbanísticas teriam endereço certo. Já existiriam sete prédios vazios, dentre os cerca de 70 prédios existentes no SCS , segundo afirmou à Agência Brasília – órgão oficial de informação do GDF – o secretário de Desenvolvimento Urbano e Habitação, Mateus Oliveira.

  • Mas que prédios são esses?
  • Qual o endereço deles?
  • Quem são os sete proprietários desses edifícios, que valeriam uma mudança urbanística de tal grandeza?

Não há critérios técnicos pré-definidos para a análise da transformação dos imóveis comerciais em residenciais. A forma como serão avaliadas e aprovadas as alterações em cada imóvel são, no mínimo, improvisadas: “o critério está definido: os 30% (dos imóveis) que chegarem primeiro com projetos de conversão terão prioridade”, disse ele. Em outras palavras será uma espécie de pique-pega. Quem pegar primeiro, leva.

Improvisam também ao não definir no projeto-de-lei em quanto os donos dos imóveis ressarcirão o GDF pelos ganhos financeiros com as mudanças de uso. Além disso, não há estudos que avaliem os impactos ambientais dessas alterações urbanísticas, reflexos no trânsito, estacionamentos – foram proibidas garagens associadas aos novos apartamentos -, adequações estruturais – esgoto, principalmente – e urbanísticas.

O alegado vazio de imóveis no Setor Comercial Sul precisa ser analisado numa perspectiva histórica. Em quanto não terão contribuído as autorizações – ou mesmo vistas grossas – para que estabelecimentos comerciais se instalassem em áreas residenciais. Basta um passeio no Lago Sul para se ver a quantidade de escritórios, clínicas, consultórios, empresas de todo tipo, colégios que se instalaram em residências. A permissividade na fiscalização incentivou a transferência de pessoas jurídicas para endereços de pessoas físicas. E avaliações como estudos da Associação Comercial do DF apontam que residências no Setor Comercial irão afugentar ainda mais estabelecimentos comerciais historicamente lá instalados. Fenômeno que deve ficar ainda mais expressivo com a prometida cobrança de taxas para estacionamento.

Porque não inverter a lógica e adotar medidas que atraiam empresas para o SCS? Estabelecimentos de Ensino, clínicas, restaurantes, representações diplomáticas – muitas delas hoje em casas do Lago Sul e Norte – museus, teatros, casas de festas e de espetáculos (que se espalharam por bairros como o Park Way) e até mesmo novos hotéis. Hoje, é tão caro para um turista de hospedar no Plano Piloto. Uma Rua 24 horas, como pensou há mais de 30 anos, o mestre de muitos urbanistas dessa cidade, professor Paulo Bicca.

SRPCA?

O GDF prefere, contudo, o caminho fácil e mal pensado. O local é inadequado para famílias com crianças. Não há equipamentos infantis (playgrounds, creches, escolas, áreas verdes como pensado por Lucio Costa para as áreas residenciais do Plano) e a topografia apresenta desníveis elevados e perigosos. Ruas de serviço estão a mais de cinco metros de fundura em relação ao passeio público. Verdadeiros precipícios urbanos. Um tombo dessa altura será coisa fácil.

Já há no GDF até quem diga que ali não deve morar famílias com filhos.
Ué?! Vamos agora criar agora o Setor Residencial Proibido para Crianças e Adolescentes, o SRPCA?

Por tudo que isso representa, alterar o Plano Piloto de Lúcio Costa, e dessa maneira improvisada e afoita, seria um crime perpetrado contra a própria cidade.

(*) Jornalista e pioneiro, morador em Brasília desde 1958. Artigo especial solicitado pelo semanário Brasília Capital